Diário de Notícias

Como Daniel Day- Lewis deu voz a Abraham Lincoln

Estreia- se amanhã ‘ Lincoln’, de Steven Spielberg, com o inglês Daniel Day- Lewis no papel do presidente Abraham Lincoln, nomeado pela quinta vez para o Óscar de Melhor Ator

- E URI CO DE B ARROS

Em maio de 2011, Steven Spielberg estava a preparar a rodagem de Lincoln, quando recebeu um envelope com uma caveira e uns ossos cruzados desenhados, e um pequeno gravador lá dentro. “Senti- me na Missão Impossível”, recordou o realizador. “Liguei- o, e ouvi Shakespear­e e o segundo discurso de posse [ de Abraham Lincoln] ditos por uma voz especial.”

O gravador havia sido enviado por Daniel Day- Lewis, que recriara a voz de Lincoln a partir de testemunho­s da época: uma voz de tenor, levemente de cana rachada, e com laivos de sotaques de três estados contíguos. Se não era Lincoln, era o diabo por ele. Junto com o gravador, vinha um bilhete onde se lia: “Telefona- me depois de ouvir isto?” Foi o que Steven Spielberg fez logo. O papel de Abraham Lincoln em Lincoln estava definitiva­mente entregue a Da- niel Day- Lewis, depois de Liam Neeson, a primeira escolha do realizador, se ter afastado do filme.

Nascido em Londres há 55 anos, Lewis já recebeu o Globo de Ouro de Melhor Ator Dramático pelo papel, e está nomeado pela quinta vez para o Óscar. Se ganhar, será a sua terceira estatueta, após O Meu PéEsquerdo, de Jim Sheridan ( 1990), e Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson ( 2008).

Embora Day- Lewis não goste de a discutir, a sua metodologi­a de trabalho – imersão em profundi- dade abissal nas personagen­s – é sobejament­e conhecida. Em O Meu Pé Esquerdo, em que fazia de Christy Brown, o poeta e pintor irlandês deficiente profundo, era alimentado e transporta­do por elementos da equipa técnica, como se sofresse mesmo de paralisia cerebral; e em O Último dos Moicanos, de Michael Mann, viveu na natureza, como um homem da América do século XVIII, comendo apenas o que caçava. Para personific­ar Lincoln, privilegio­u a voz, por ser “um profundo e com- plexo espelho do carácter de uma pessoa”. E partiu daí para dar carne, osso, emoções e convicção a uma figura que foi “mitificada até ao ponto da desumaniza­ção”.

Durante as filmagens de Lincoln, Day- Lewis enviava a Sally Field, que interpreta a mulher do presidente, sms assinados A. ( de Abraham), e pedia que o tratassem por “Senhor Lincoln”. Mas, ciente da sua reputação de ator “obsessivo” e “fanático”, e das histórias inventadas ou exageradas que circulam sobre ele, pediu a um técnico amigo que pusesse a correr, no Twitter e verbalment­e, que tinha exigido conduzir diariament­e uma charrete, para “melhor se meter dentro da personagem”. E ficou muito divertido a saborear as repercussõ­es da história.

O que quer que se pense de Lincoln ( e o autor destas linhas não é nada amigo da fita), a interpreta­ção de Daniel Day- Lewis é inatacável. Se não é Abraham Lincoln, é mesmo o diabo por ele.

Hoje em dia, por obra e graça de uma trágica ligeireza intelectua­l ou por ação dos conselheir­os para a“comunicaçã­o”, muitos políticos vivem angustiado­s pela imagem que produzem. Que imagem temos? Que imagem devemos construir? Que imagem vai nascer desta ou daquela ação?... O filme Lincoln não é para tais políticos ( até porque, para a maior parte deles, a visão pueril da imagem revela uma apoteótica ausência de cultura cinematogr­áfica): apoiado num prodigioso argumento escrito por Tony Kushner, Steven Spielberg encena o trabalho político como um elaborado e complexo exercício da palavra. Das palavras. A questão transcende o poder retórico que as palavras podem envolver. Em boa verdade, o Lincoln de Spielberg é uma personagem que sabe que o desígnio de libertar os escravos e pôr fim à escravatur­a só se decidirá no plano militar e económico se, em conjugação com muitas outras ações, começar a haver palavras para lidar com o novo contexto que se quer construir. Daí que este seja um filme, literalmen­te, sobre a letra da Lei. Daí também o valor essencial da voz, misto de certeza e vulnerabil­idade, com que o genial Daniel Day- Lewis compõe o “seu” Abraham Lincoln. Entre os muitos momentos emblemátic­os de tão prodigioso filme, registe- se o diálogo de Lincoln com Mrs. Keckley ( Gloria Reuben), escrava libertada e camareira de Mary Todd Lincoln ( Sally Field). Ao ouvir as memórias do efeito devastador da escravatur­a na família de Keckley, Lincoln pergunta- lhe se já pensou como vai ser a vida dos milhares que estão à beira de ser libertados. Ela confessa “não saber”. Na angústia com que o diz perpassa o sentido mais utópico que a política pode envolver, abrindo hipóteses de vida para as quais, afinal, ainda nos faltam as palavras.

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DREAMWORKS PICTURES & TWENTIETH CENTURY FOX Uma cena de ‘ Lincoln’: Daniel Day- Lewis diz que Abraham Lincoln é uma figura “mitificada até ao ponto da desumaniza­ção”
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Óscar 1: ‘ O Meu Pé Esquerdo’
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Óscar 2: ‘ Haverá Sangue’

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