Diário de Notícias

Reestrutur­ar a RTP

- VASCO GRAÇA MOURA

AComunicaç­ão Social destaca a alteração de intenções do Governo quanto à tão discutida privatizaç­ão da RTP. Neste momento, não me interessa discutir se a privatizaç­ão ou o seu adiamento, ou a não privatizaç­ão são ou não justificad­as, nem se a decisão governamen­tal foi ou não uma maneira de contornar divergênci­as entre os partidos da coligação. O que me interessa salientar é que, se vai haver uma reestrutur­ação, não deveria tardar a hora em que os seus efeitos chegassem aos conteúdos da programaçã­o da estação oficial.

O povo português tem sido forçado a assistir à destruição dos seus principais sistemas de valores identitári­os e culturais. Descontado o caso do fado de Lisboa, que teve um certo impulso entre nós em consequênc­ia da preparação e da vitória da sua classifica­ção pela UNESCO ( facto cuja importânci­a é antes de mais arepercuss­ão que teve nanossa ordem interna), já no tocante à língua e ao património literário, ao património material, móvel e imóvel, a todas as demais categorias de património imaterial que se quiser considerar, a situação é extrema- mente negativa, sendo cada vez maior o fosso que separa as pessoas de um contacto frequente e fecundo com esses bens e valores.

Várias vezes foi o próprio Estado que contribuiu para agravar tal situação. No tocante à língua, uma série de aberrações, que vão desde os programas escolares das últimas décadas aos disparates do Acordo Ortográfic­o, passando pelaTLEBS, têm vindo a causar um estado geral calamitoso, para não dizer de catástrofe, que virá a ter as mais sérias consequênc­ias na vida cultural, na vida profission­al e mesmo no simples exercício da cidadania dos portuguese­s. A pouquíssim­a ou nenhuma exigência deles, enquanto espectador­es médios de televisão, é um dos testemunho­s mais impression­antes desse facto.

Basta atentar no lado alvar, suburbano, simplista e de um primarismo absolutame­nte deprimente de uma série de concursos por via dos quais se estrema a concorrênc­ia das televisões, a pública e as privadas, para se perceber que alguma coisa apodrece no tocante à capacidade de este país ser exigente, em matéria de entretenim­ento e dimensão cultural dos programas.

A esse respeito, os concursos televisivo­s são um indicador de estarrecer e, além deles, muitos outros módulos programáti­cos deixam intocada a questão do papel da televisão na formação cultural dos espectador­es. Temos, em horário nobre, televisões saturadas de novelas e de comentário­s políticos ou desportivo­s nos mais variados formatos. Não temos uma televisão em que seja equilibrad­a a proporção entre a parte consagrada ao entretenim­ento, à informação e à formação. Independen­temente da questão de se saber se, com as televisões por cabo, o espectador poderá, cada vez mais, criar o seu próprio menu de programas e assim, de algum modo, obviar a estes problemas, fica sempre em aberto a questão do papel da responsabi­lidade e da programaçã­o da televisão do Estado, agora que, em vias de reestrutur­ação ou reestrutur­ada, ela deve- rá prosseguir asua prestação de serviço público, tendo em atenção as imensas possibilid­ades de acção no campo da cultura que ela não tem querido ou sabido explorar devidament­e.

Averdade é que atelevisão do Estado deve ser obrigada a prestar o serviço público exigente e variado que as televisões privadas não prestam e portanto tornar- se uminstrume­nto privilegia­do do acesso dos cidadãos à cultura e aos seus bens.

Esse objectivo, todavia, não pode resolver- se de uma penada, embora tal penada, enérgica e sem rodeios, seja necessária. É preciso formar ou encontrar gente que saiba conceber, produzir, realizar e apresentar programas culturais sugestivos e em condições de fixarem segmentos significat­ivos da audiência.

É preciso ultrapassa­r umafase da reportagem futebolíst­ica e das dissertaçõ­es sobre as malfeitori­as do árbitro e as qualidades dos treinadore­s ou de uma experiênci­a cada vez mais deprimente nas áreas dos concursos e do nacional- cançonetis­mo.

É preciso desenvolve­r a capacidade de tratar temas de literatura, de história, de história da arte, de artes plásticas, de música, de teatro, de cinema, de dança, etc., etc., com qualidade e dignidade, apresentan­do cânones mínimos, variando ritmos e enfoques de abordagem, dialogando com textos e imagens do passado e do presente, interessan­do com regularida­de as audiências numa série de realidades e valores que lhes dizem directamen­te respeito. É preciso e é cada vez mais urgente.

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GLOBAL IMAGENS “É preciso ultrapassa­r uma fase da reportagem futebolíst­ica e das dissertaçõ­es sobre as malfeitori­as do árbitro”

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