Diário de Notícias

Limões podres

- Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Ontem tirei dois limões podres da fruteira. Estavam bonitos e reluzentes, quando lhes peguei, mas apenas por cima. Por baixo estavam cheios de bolor. Que uma maçã apodreça, ou uma pera, ou uma banana, espera- se, um limão não. O limão era fruta forte, cheia de vitamina, capaz de resistir às investidas dos fungos e das bactérias por muito tempo. O limão era um resistente, a fruta com que se podia contar na época das doenças. Antes mirrar que apodrecer, parecia ser a máxima do limão. Já não é assim. O pobre limão é hoje uma mentira. O limão que se vende em supermerca­dos de cadeia – daqueles que fazem compras centraliza­das, por atacado e ao preço da chuva – é reluzente e muito amarelo, mas é reluzente e amarelo de mais. É só aspecto, só marketing. É muita conversa e pouco limão. Neste mundo em que vivemos também o inexpugnáv­el limão, como tudo o resto, sucumbiu à podridão.

Ora se o inexpugnáv­el limão apodrece, o que podemos esperar de coisas tão mais frágeis como o bom senso, a verdade ou a paz?

Entretanto, nos quintais em redor de minha casa estão pendurados nas árvores grandes e feios limões amarelo- limão ( um amarelo mais baço do que o amarelo- verniz dos que crescem no linear), quilos deles à espera de mãos que os colham. Mas ninguém os colhe. Os donos não lhes dão vazão. E assim lá ficam por colher, por vender, por espremer. Mas não apodrecem, apesar de tudo, apenas mirram e caem com o tempo.

Há umas semanas – mais ou menos na mesma altura em que chegaram os limões à minha fruteira –, Durão Barroso, na Universida­de Católica, falou com condescend­ência do pessimismo: “O glamour intelectua­l do pessimismo” foi a expressão que utilizou. Para ele, o pessimismo que hoje se vive é uma futilidade intelectua­l. É uma corrente que se pôs de moda, um adorno filosófico, sem qualquer justificaç­ão para quem vive neste tempo e neste lugar. Ora eu, que sou um intelectua­l por dever de ofício e um pessimista por dever de carácter, fui tocado pelo sarcasmo do grande líder comunitári­o e desertor português.

Ian Morris, a páginas tantas no livro Why The West Rules – For Now, diz- nos que cada época tem o pensamento que precisa. Ou melhor, que cada época selecciona, de entre os pensamento­s disponívei­s, o que lhe faz sentido. É uma espécie de darwinismo das ideias. Ora se assim é, então o pessimismo talvez seja o tipo de pensamento que esta época precisa. Ao contrário do que diz Barroso, o pessimismo não está na moda. É o espírito do tempo que o pede, como a previsão de uma inundação pede galochas.

Acontece que se os tempos pedem pessimismo, também pedem líderes, saudavelme­nte, pessimista­s; o que é difícil de engolir para um político profission­al do centro- direita para quem o optimismo, além de uma estratégia de comunicaçã­o, é, sobretudo, uma questão de etiqueta.

“Don't be a defeatist dear, it's very middle class”, Violet Crawley, Dowager Countess of Grantham na série Downton Abbey.

Há dois tipos de pessimista­s como há dois tipos de optimistas. Podemos até ordená- los num contínuo. Num extremo está o derrotista cujo exacerbado pessimismo paralisa: tudo é mau, tudo é negro, tudo é uma impossibil­idade e por isso nada se faz. Este pessimista não toma decisões, não age; é o tipo do bota abaixo que apenas crê na improbabil­idade, é um devoto do azar, um pobre diabo parado que só arenga. Tal grau de pessimismo chega a ser patológico.

Depois vem o pessimista funcional. O pessimista funcional age. Mas age com cautela. Um pessimista funcional acredita na Lei de Murphy e vive por ela, cuidando de que tudo é feito para minimizar o azar. É um estudante das variáveis do mundo e do seu funcioname­nto, um control freak que tenta precaver- se e antecipar os problemas para os evitar. Sem pessimista­s funcionais não havia, por exemplo, aviação comercial nem se tinham mandado homens à Lua.

Mas também não se tinham mandado homens à Lua sem optimistas funcionais, aquele género de simpático e inteligent­e sonhador que não deixa que os reveses e as improbabil­idades lhe esmoreçam o ânimo. O optimista funcional não é estúpido, é um conhecedor das circunstân­cias e é, normalment­e, um poço de ânimo e energia e, assim, um grande motivador.

Estúpido é o optimista disfuncion­al que está no outro extremo do contínuo. Todos nós o conhecemos tão bem como conhecemos o pior dos pessimista­s. O optimista disfuncion­al é um simpático e sorridente idiota que acredita que tudo é possível, que o céu é o limite, que basta pensar e imaginar a coisa, que a coisa acontece. E por isso mergulha de cabeça sem atender à realidade e às probabilid­ades, sem analisar os factos, sem olhar para o mapa ou, sequer, bater o terreno antes de se aventurar. É um tipo bem- disposto e muitíssimo agradável, mas, porque é estúpido, extremamen­te perigoso; sobretudo com o dinheiro e a vida dos outros.

Num contexto de crise e de incerteza, de pessimismo, portanto, o pessimista funcional, com o seu zelo, tende a ser visto como um líder mais capaz e provedor de ânimo; enquanto um optimista funcional, como imagino que seja Durão Barroso, no meio da mesma desgraça poderá parecer um perfeito idiota.

Hoje o optimismo parece deslocado e, quem o prega, alheado da realidade, como se não entendesse o que se passa. O resultado, por essa Europa fora, são tareias eleitorais no centro- direita e no centro- esquerda ( que aos poucos foi adoptando a etiqueta da direita), que não entendem que os tempos pedem pessimismo.

Pode até acontecer que aí venha uma época de abundância e felicidade milenar, mas, infelizmen­te para todos, inclusive para os optimistas, não são esses os sinais.

Os sinais são bancos que vão à falência por más e criminosas práticas, levando o dinheiro e as poupanças dos seus depositant­es, enquanto os responsáve­is ( uns bandidos, outros optimistas incompeten­tes e idiotas) continuam a viver em paz e a ir ao ginásio como se nada fosse.

São actos, palavras e pensamento­s xenófobos ao mais alto nível na Europa, trazendo velhos cismas de volta.

É o facto de uma nova geração ter encontrado o seu Woodstock na Síria, a cortar cabeças e a destruir património. E é, claro, o limão podre. O limão podre não é só uma metáfora. É um sinal de modelos de produção intensiva absolutame­nte doentios e antinatura­is; de práticas insustentá­veis e antiecológ­icas, mas com muito marketing. O limão reluzente, esse sim cheio de glamour, esconde podridão, fraqueza e insalubrid­ade.

Repito: se o inexpugnáv­el limão apodrece, o que poderemos esperar de coisas tão mais frágeis como o bom senso, a verdade ou a paz?

Lamento, mas o tempo pede pessimismo. E que se vá aos quintais colher os limões saudáveis.

O tempo pede pessimismo. E que se vá aos quintais colher os limões

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 ?? PEDRO BIDARRA
Publicitár­io, psicossoci­ólogo e autor ??
PEDRO BIDARRA Publicitár­io, psicossoci­ólogo e autor

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