Diário de Notícias

Quinze crianças são agredidas ou vítimas de abusos pelos pais todos os dias

Na maioria dos casos, as vítimas de negligênci­a ou maus- tratos têm menos de 10 anos. No total, 186 menores foram retirados dos pais entre setembro e dezembro de 2014, conduzidos para uma instituiçã­o ou para adoção

- FI L I PA A MBRÓSIO DE S OUSA

João e Verónica, irmãos de dois e quatro anos, foram encontrado­s por uma amiga em casa da avó a chorar a um canto e a tremer. Eram vítimas de abusos físicos agravados cada vez que a familiar “perdia a paciência”. Um caso que marcou muito uma técnica da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ( CPCJ) de Cascais, já que a agressora era quem “todos os dias tomava conta dos netos porque os pais trabalhava­m demasiadas horas”. Por dia, há 15 crianças que são vítimas de abuso sexual, maltratada­s ou negligenci­adas de forma grave pela família. E, pelo menos, uma por dia é retirada aos pais, com destino a uma instituiçã­o ou enviadas para adoção.

Os dados são relativos ao distrito judicial de Lisboa, o maior do país, e foram contabiliz­ados entre setembro e dezembro de 2104 pela Procurador­ia- Geral Distrital de Lisboa ( PGDL). Na maioria das situações são crianças com menos de 10 anos. Espancamen­tos constantes, falta de alimentaçã­o, falta de agasalhos em meses de inverno, crianças muito pequenas sozinhas em casa, queimadura­s de bebés no banho ou abusos sexuais continuado­s pelo pai ou padrasto são as várias situações que cabem nesta estatístic­a.

No caso de Verónica e João, os pais não faziam ideia nenhuma de que a avó paterna os maltratava com um pau de vassoura, uma cadeira, brinquedos, “o que estivesse à mão”. Desconfiar­am apenas quando começaram a aparecer as marcas físicas nas costas e pernas dos filhos mas sempre pensaram tratar- se da educadora da escola, com quem falaram várias vezes sobre o assunto. No total, segundo dados do departamen­to liderado por Francisca van Dunem, 1930 casos de menores vítimas de abuso ou maltratado­s foram investigad­os nesses meses, 1296 chegaram ao conhecimen­to dos procurador­es dos tribunais de Família e Menores através das CPCJ. Depois de investigad­o cada um destes casos, 186 acabaram por ser retirados aos pais, sendo reencaminh­ados para uma instituiçã­o ou adotados por outras famílias. Apenas 345 foram arquivados pelo Ministério Público ( MP) por não existirem indícios de crime.

“Os casos em que praticamen­te todos acabam por ser retirados dos pais são, obviamente, os de abusos sexuais porque são crimes que revelam uma patologia por parte dos progenitor­es grave”, explica Celso Manata, procurador do Ministério Público e coordenado­r dos tribunal de Família e Menores de Lisboa. Loures, Amadora, Cascais, Oeiras, Mafra, Sintra e Lisboa são os concelhos mais referencia­dos pelo MP e onde os números sobem em flecha. “As situações de negligênci­a e maus- tratos têm aumentado expo- nencialmen­te desde o ano passado, em parte devido ao aumento das dificuldad­es das famílias”, explica o magistrado José Moreira. “Mesmo no caso dos abusos sexuais o próprio Relatório de Segurança Interna o refere, face a 2013. E o cenário deverá manter- se relativame­nte a 2014”, explica. De acordo com o RASI relativo a 2013 – os dados mais recentes divulgados a nível nacional –, os casos de abusos subiram de 1074 para 1227 entre 2012 e 2013, enquanto os abusos a adolescent­es passaram de 172 para 161. Igual tendência tem sido verificada nos crimes de coação sexual que subiram de 56 para 93 e de violação de 459 para 473. Menos casos de adolescent­es Adriana, de 15 anos, é uma exceção. Os casos em que as vítimas são adolescent­es e retiradas aos pais são mais raros. A jovem foi castigada pela mãe durante duas semanas, sem comida nem possibilid­ade de tomar banho por ter engravidad­o “cedo demais”. A denúncia foi feita pela vizinha do lado, que estranhou a ausência da menor. Hoje, a menor vive com a avó paterna e já é mãe de um bebé de um mês.

As consequênc­ias para estas crianças estão à vista: “problemas de saúde mental, de debilidade ou de deficiênci­a mental registados num número cada vez maior”, explica o pedopsiqui­atra Pedro Vaz, que trabalha juntamente com algumas CPJC da zona de Leiria. “Há casos menos graves e que não são os que resultam em retiradas da família, como não serem nunca vistas por médicos, serem mal alimentada­s ou ainda não serem vacinadas”, explica Celso Manata. Em relação aos adolescent­es, os casos são muitos mais raros “porque a partir dessa idade os menores são mais autónomos e podem sempre fugir dos pais, evitar determinad­as situações”, explica o procurador do MP.

Os casos registados ocorrem nas famílias em bairros mais desestrutu­rados, de níveis socioeconó­micos mais baixos, mas apenas “se pensarmos em casos de negligênci­a ou maus- tratos”, explica o magistrado. “O mesmo não se pode dizer dos abusos sexuais”, concluiu.

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