Diário de Notícias

“Tenho 53 anos de praça e 200 de trabalho”

- MARI A J OÃO GUARDÃO

Isto é tudo lindo”, diz Açucena Veloso, o dedo a correr a escama da dourada de seis quilos, a apontar o vermelho da guelra, o brilho dos olhos. Há umas cinquenta variedades de peixe fresco espraiadas pela correnteza de bancas à direita de quem atravessa a porta principal do renovado Mercado 31 de Janeiro, todas dela menos as duas do fundo, um pequeno império que gere de bata azul, galocha branca e luvas de borracha, como cada uma das suas funcionári­as.

“Somos 15 a vender. Quando eu comecei éramos 122, veja bem, cada uma com a sua qualidade de peixe. Eu tinha dois lugares e vendia pescada.” Começou cedo e, literalmen­te, do quase nada. Era o princípio da década de sessenta quando a mãe a deixou à porta do então Mercado do Matadouro com pouco mais de 8 anos e uma cesta de limões, negócio da família na capital. A família, elas as duas mais uma das irmãs, era uma pequena parcela da prole de dez que continuou em Cabanelas, Braga, com os avós e o pai, e o negócio coisa que não ia além do fornecimen­to de citrinos a meia dúzia de cafés fazedores de gelados e da venda de rua onde e quando a polícia não as apanhasse. Ali na praça as vendedeira­s de peixe engraçaram com ela e com a energia que ainda hoje tem. “Naquela altura havia muito carapau miúdo que se vendia barato e elas davam- mo para vender às mulheres da fruta e da hortaliça. E eu vendia sempre tudo!” Quando uma das suas bancas ficou sem peixeira, Laurinda Moreira, conhecida por Laurinda Lisboa, chamou a miúda para trabalhar e a história de Açucena Veloso e do peixe começou.

“Costumo dizer que tenho 53 anos de praça e 200 de trabalho.” Não é para menos. Levanta- se à uma e meia da manhã e pouco depois sai da casa da Aroeira em direção a São Julião do Tojal e ao MARL – Mercado Abastecedo­r da Região de Lisboa, para escolher o peixe que os fornecedor­es foram buscar à lota, poucas horas antes. Ela já sabe com o que conta, esteve até à meia- noite ao telefone com eles, a saber da oferta chegada do mar. No cami- nho para Picoas, a carrinha faz uma paragem na Pastelaria 1800, ao Rato, “que abre especialme­nte para mim às cinco da manhã e já tem o pequeno- almoço na mesa quando eu entro”. Depois é a chegada frenética ao mercado, toneladas de caixas de peixe a serem descarrega­das e arranjadas e etiquetada­s – que bicho é, de onde vem, qual o preço do quilo – e centenas delas carregadas de novo para seguirem para hotéis e restaurant­es numa ordem precisa, ditada pelos pedidos da véspera. Passa horas ao telefone com clientes e fornecedor­es, raramente consegue tempo para uma sesta quando sai da praça, ao princípio da tarde. Das duas da manhã à meia- noite, de terça- feira a sábado, Açucena não para, numa prova de resistênci­a capaz de envergonha­r campeões de maratonas, pontuada por uma inacreditá­vel boa disposição. “Não desejo a minha vida a ninguém. Mas nunca tenho pressa para me ir embora. Tenho gosto nisto, tenho vaidade.”

Pega num robalo de sete quilos como se fosse nada e leva- o para arranjar do outro lado do corredor, abraça o filho da colega da fruta que lhe vem dizer que “ficou bem na carta de condução”, recebe com beijos cada freguês habitual, mete- se com os da primeira vez – “tem de tudo, leva uma posta e paga um inteiro” ou “aprecie à vontade que não paga por apreciar” –, avisa da chegada de outro – “ó Sofia, olha a encomenda do senhor Victor” –, acompanha um chefe que veio de Setúbal para a co- nhecer. Justa Nobre, Victor Sobral, José Avillez, a lista da clientela profission­al é enorme e não para de crescer, Açucena fornece os mais sólidos nomes da gastronomi­a nacional há anos e não perde uma edição do Peixe em Lisboa ( já está a preparar- se para a próxima edição).

Fala da equipa, das peixeiras que ao seu lado não param de arranjar pescado e atender fregueses, do pessoal responsáve­l pelas entregas, de quem está ao balcão no espaço dos mariscos e congelados, nos pedidos e nas contas. “São 23 lugares, é uma responsabi­lidade muito grande.” Parte da família trabalha ali, duas irmãs, cunhados, o marido da filha mais velha e pai das duas netas, a filha mais nova – “que tem estudos e organiza eventos mas vê o gosto que eu tenho nisto e começou a acompanhar- me em tudo.” Do peixe às operações bancárias, dos “desenhos” ( a marca Açucena Velo- so tem uma imagem gráfica cuidada, multiplica­da nos uniformes, nos cartões, no logótipo) ao Facebook, Susana, de 30 anos, encarrega- se de tudo, a aplicar o ditado “filha de peixe” como ninguém e a acompanhar muitas vezes a mãe nas madrugadas de transporte do peixe, agora que problemas de costas confinaram o pai ao escritório. “Sou casada há 43 anos, sem interrupçõ­es”, diz Açucena, e conta que foi uma noiva de Santo António e brinca que todos os anos manda fechar o mercado nesse dia. “Conheci o meu marido no Alto de São João, onde eu morava com a minha mãe. Ele era mecânico e a primeira vez que o vi estava debaixo de um carro – gostei logo dos pés”, dispara com uma gargalhada. A energia dela parece inesgotáve­l, mesmo quando confessa o cansaço do fim da semana ou conta o susto daquela vez em que desmaiou e teve de ir para o hospital “por causa de uma coisita de coração. Mas fiquei logo boa”.

Acha que um belo peixe é remédio para tudo, conta que já foi à televisão cozinhar dois dos seus pratos favoritos, atum no forno e arroz de tamboril, e mantém intacta a jovialidad­e da fotografia de há 40 anos, pendurada ali ao lado mas tirada no mercado antigo, que deu lugar ao vizinho centro comercial. Lá está ela na banca de madeira recheada de pescadas, a balança ao lado e na parede de azulejo branco o célebre cartaz MFA, POVO/ POVO, MFA. E Açucena em grande pose sorridente, toda ela amanhãs que cantam.

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