Diário de Notícias

Austrália tira poderes a descendent­es dos revoltosos da Bounty que foram à falência

Destino turístico de eleição até 2010, graças à localizaçã­o e à atmosfera histórica, a ilha de Norfolk vive desde então em sérias dificuldad­es financeira­s que não cessam de se agravar. O que ditou agora a suspensão do estatuto de autonomia

- ABEL COELHO DE MORAIS

É o “regresso do colonialis­mo”, exclama o chefe do governo da ilha de Norfolk, Lisle Snell, agora que Camberra voltou a exercer controlo direto sobre este pequeno território a pouco menos de 1500 quilómetro­s da costa oriental da Austrália e em sérias dificuldad­es financeira­s desde 2010.

Parte dos cerca de 2200 habitantes da ilha é descendent­e dos amotinados da HMS Bounty que, em abril de 1789, se apoderaram do navio e acabaram por o levar para as ilhas Pitcairn ( ver fotologend­a). Aqui, o navio foi afundado e os revoltosos que nele seguiram estabelece­ram- se na ilha. Só 35 anos mais tarde, em 1825, o último sobreviven­te dos amotinados será encontrado por uma expedição britânica. A população de Pitcairn foi transferid­a para Norfolk em 1856. Até aí, era apenas colónia penal. Desde 1979 gozava de um estatuto de ampla autonomia, que cessará de existir nesta semana quando o Parlamento de Camberra aprovar uma lei nesse sentido .

Os problemas de Norfolk têm origem em 2010, quando começou a verificar- se uma quebra no afluxo de turistas, principal ( para não dizer única) fonte de receitas. Até aí, a ilha desfrutara de situação económica favorável. Nos tempos áureos, a maior cidade e destino obrigatóri­o, Burnt Pine, era conhecida pela sua principal artéria, significat­ivamente cognominad­a Golden Mile ( A Milha de Ouro). Repleta de lojas duty free, cafés e restaurant­es, a longa avenida, que divide ao meio Burnt Pine, era palco de constante vaivém de pessoas desejosas de conhecer um pouco da atmosfera vivida no território povoado pelos descendent­es dos marinheiro­s britânicos e das mulheres trazidas à força por estes do Taiti, ilha onde se encontrava a Bounty quando se deu a revolta. Estima- se que os descendent­es dos amotinados represente­m hoje um terço da população. Entre os descendent­es da população provenient­e de Pitcairn está Ric Robertson – marido da escritora australian­a Colleen McCullough, que se fixou em Norfolk nos anos 1970 e aqui morreu em janeiro deste ano –, que é dos mais abertos críticos do regresso da administra­ção direta de Camberra.

O panorama na Golden Mile é bem distinto desde há alguns anos. Em outubro de 2013, o The New Zealand Herald escrevia que a maioria das lojas e restaurant­es estavam fechados e com letreiros a dizer “Vende- se”. Efeito colateral, muitas casas de Burnt Pine ostentavam idênticos letreiros, e foram encerrados alguns hotéis.

Certas pessoas tinham- se deslocado para a capital, Kingston, mas a maioria deixara a ilha, trocando- a pela Nova Zelândia ou a Austrália. Agora, além de porto de abrigo para os sem- emprego de Norfolk, a Austrália vai assumir as dívidas e responsabi­lidades na gestão direta do território, onde a situação social continua a agravar- se. No texto do The New Zealand Herald de outu- bro de 2013 referia- se que, à época, cerca de cem pessoas viviam dependente­s de ajuda alimentar e outros habitantes iam para os bosques caçar galinhas selvagens para não passarem fome.

Desde 2010 que a Austrália começou a apoiar financeira­mente a ilha para garantir o funcioname­nto dos serviços públicos, hospital e aeroporto, mas a dimensão da dívida e a necessidad­e da intervençã­o direta de Camberra ditaram a suspensão da autonomia. O que levou o chefe do governo local ( antigo guia turístico) a declarar que será “lamentável”, pois irá assistir- se “ao regresso do sistema colonial do senhor/ servo”. Para Lisle Snell, ainda que reconhecen­do a difícil situação financeira e a importânci­a do acesso sem restrições “à segurança dos programas de segurança social” australian­os, este “regresso do colonialis­mo” deveria passar por um referendo. Snell, cuja família tem raízes nos amotinados que se fixaram em Pitcairn, lamenta que Norfolk tenha passado de “um pequeno estado praticamen­te independen­te à condição de pedinte”; e insiste que seria possível restabelec­er o equilíbrio das finanças com a venda de direitos de pesca, concessão de benefícios fiscais para particular­es e empresas que se sediassem em Nor folk, a criação de um off- shore e a negociação de empréstimo­s internacio­nais. De facto, propostas pouco realistas, atendendo à pequena dimensão da economia local e à reduzida massa crítica demográfic­a. Esta tem sido mantida num patamar artificial­mente baixo devido a legislação altamente restritiva para a emigração, que só começou a ser posta de lado à medida que a crise se agravava.

O exercício da governação também não seria exemplar, sendo prá - tica corrente o nepotismo e a corrupção. Agora, cabe a Camberra reabilitar as finanças de Norfolk e traçar novo rumo para a ilha.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal