Há cem anos Portugal era só paisagem e o Orpheu, dizia Pessoa
Em1915 Mário de Sá- Carneiro, Almada Negreiros ou Fernando Pessoa, “arquitetos de novos mundos”, chocavam o país com esse “manicómio” que foi a revista Orpheu. O que resta hoje da sua herança?
“Há apenas duas coisas interessantes em Portugal – a paisagem e o Orpheu”, escrevia Fernando Pessoa após o lançamento da revista em março de 1915. Dessa, da qual diria ainda ser “à prova de Portugal”, comemora- se agora o centenário. E pergunta- se, por isso, se esta foi realmente “à prova” de Portugal e se este, que agora a celebra, é à prova de Orpheu. Os investigadores Jeronimo Pizarro e Antonio Cardiello que, com Sílvia Laureano Costa, conceberam a exposição itinerante Nós, os de Orpheu, que através de obras e documentos traça o percurso da revista, e o artista Pedro Proença que, igualmente a convite da Casa Fernando Pessoa, assina a exposição de obras próprias Os Testamentos de Orpheu, pensam essa “espécie de milagre cultural em Portugal” – nas palavras de Cardiello.
1915. Fernando Pessoa em Lisboa. Mário de Sá- Carneiro, José Pacheco e Santa Rita Pintor já haviam regressado de Paris. Luís de Montalvor voltara do Rio de Janeiro com o projeto de criar uma revista de nome Orpheu. Projeto já antes discutido por Pessoa e Sá- Carneiro sob o nome Lusitânia ou Europa.
A 24 de março, o primeiro número da revista estava pronto na gráfica. No dia seguinte, o Orpheu via a luz do dia. Segundo Jeronimo Pizarro, investigador pessoano e ti- tular da cátedra de Estudos Portugueses da universidade colombiana de Los Andes, “nos horóscopos [ que Pessoa fazia] está indicado 26” como data do primeiro dia da revista, que para o investigador deveria referir- se a “um público mais alargado”.
A Ode Triunfal de Álvaro de Campos, Para os Indícios de Oiro de Sá- Carneiro ou prosa de Almada Negreiros surgiam ao abrir a revista com capa de José Pacheco. “Tareia”. Assim definiu Pessoa, numa carta, a reação do jornal A Capital , sintomática dos restantes, ao Orpheu. “A caminho do manicómio” era o título do artigo sobre a revista n’O Intransigente. Na mesma carta, dirigida a Armando Côrtes- Rodrigues, Pessoa, que com o brasileiro Ronald de Carvalho assumiu a direção do primeiro número – tal como faria com SáCarneiro no segundo –, falava de “um triunfo absoluto” e de um “escândalo enorme”.
“A reação da imprensa logo ao primeiro número foi de escárnio. Foi um terramoto de críticas, de insultos, de ironia. Figuras associadas a instituições psiquiátricas, à loucura, à demência, à forma completamente incompreensível de comunicar, de falar, uma linguagem delirante”, nota António Cardiello, investigador em Filosofia e autor, com Pizarro, de edições críticas da obra pessoana.
“Numa altura em que a Europa estava a explodir, o Orpheu acom- panha de uma outra maneira essa explosão e esse sentimento de as coisas terem de mudar através do confronto da provocação e da mudança radical, e muitos dos colaboradores são autores que queriam indisciplinar, fazer grandes transformações”, observa Pizarro.
O número dois da revista, em julho do mesmo ano, constituía uma “subtil resposta” e uma “provocação”– nas palavras de Cardiello – perante o apelido de “manicómio” que ecoava na sociedade portuguesa em relação à geração de Orpheu. Nesse que seria o último número da revista surgia a poesia de Ângelo de Lima, esse sim, real- mente internado no antigo hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, a par de quatro hors- texte de Santa Rita Pintor, a Ode Marítima de Álvaro de Campos ou Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa. Este último que, segundo Pizarro, “sentiu que a própria revista constituía um grito”.
Desse “grito”, Pedro Proença, autor da exposição que, a partir de amanhã e até 26 de setembro ocupará toda a Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, afirma que “há uma pulsão que tem que ver com o próprio Orfeu [ figura da mitologia grega], é dispersão, multiplicidade, é uma história complexa que tem que ver com música e com a noite”.
Dessa geração que o formou, da - do que logo na adolescência “imitava algumas coisas” que com ele “mexeram muito”, diz que aqueles artistas viviam uma “comunhão e solidão ao mesmo tempo”. E não é difícil imaginá- lo numa posição semelhante enquanto fala ao DN no seu ateliê rodeado das telas – em breve expostas também com cartazes que avançam já para o dadaísmo – povoadas por versos como “Amo- vos a todos, a tudo, co - mo uma fera”, da Ode Triunfal, e diversos elementos herdeiros de Amadeo de Souza- Cardoso, que participaria no terceiro número da revista, que estava previsto para 1916 e não saiu por motivos de financiamento, antes disso assegurado pelo pai de Sá- Carneiro.
Se devemos algo a Orpheu? “Muito, muito, mas é difícil de avaliar, porque Orpheu é a cristalização da arte moderna em Portugal. Do que Cesário Verde, Eça de Queirós, Antero de Quental e muitos escritores começaram a preparar”, responde Pizarro. “Ofereceram- nos uma maneira diferente de conceber o nosso mundo, foram grandes arquitetos de novos mundos. É assim que eu julgo essa geração” afirma, por seu turno, Cardiello.
“Orpheu acabou. Orpheu continua”, escrevia Pessoa em 1935.
As exposições Nós, os de Orpheu e Os Testamentos de Orpheu assinalam o centenário