“A minha escrita depende da obsessão”
Andamos rentes à morte e mergulhados na solidão. Ou seja, não há espaço para gargalhadas na conversa com Carlos Castán. Tudo por causa de um livro, iluminado apesar do título. Sendo em paralelo escritor e professor, recomendaria este seu romance de estreia aos seus alunos? Em boa verdade, não o faria. Tenho uma boa desculpa: como sou professor de Filosofia, há um manancial enorme de outros livros, de outro género, que devo recomendar. Além disso, talvez por pudor, não me sentiria bem a incluir os meus l i vros – este ou os anteriores – numa lista desse género. Acontece que tenho alunos muito curiosos e alguns parecem não resistir a procurar o escritor que há além do professor… Mas, atenção, também não escondo o Má Luz, nem me parece que contenha algo de inconveniente. Mas, à partida, não o recomendo, até por ser tão duro. O que o levou a escrever um livro tão duro, as vivências ou a observação? Há um pouco de tudo… Há uma base pessoal mas em momento algum eu atinjo o grau de desespero do protagonista, esse estado emocional tão atroz, não afloro jamais a possibilidade de suicídio… Diria que há uma graduação mais quantitativa do que qualitativa: quando se conhece a essência do sofrimento, o que falta em experiência tem de vir da criatividade, para sublinhar e completar um estado de alma. No livro, tento explicar esta ideia com o paralelo entre os que estiveram em Auschwitz e os que passam pelo serviço militar espanhol – os princípios da humilhação e da indignidade são os mesmos, só varia o respetivo grau de intensidade. Por outras palavras, não é evidentemente um livro autobiográfico, mas que parte de sensações semelhantes vividas pelo autor… Pode dizer- se que este é, sobretudo, um livro sobre a solidão? Rigorosamente. Esse é um dos temas que me perseguem de forma recorrente: um dos meus anteriores livros chamava- se Museo de La Soledad [ Museu da Solidão] e era um mostruário das diferentes formas de estar só. Neste livro, a solidão tem uma presença mais radical –é a do protagonista, a do amigo, até a de ambos juntos… Um dos momentos de maior solidão acontece ao protagonista precisamente quando lhe cabem os fins de semana com os filhos e ele chora, desesperado, porque não sabe como agir… O protagonista enfrenta aquilo a que eu chamo a desolação total e as coisas mais triviais da vida, dos passeios com os filhos às idas ao supermercado, transformam- se em ocasiões doentias, dolorosas… Ele não arruma a casa e não está preparado para receber os miúdos, que precisam sempre de alguma disciplina… Outro momento marcante: o encontro da personagem com a sua versão infantil, que leva o adulto a pedir desculpa à criança por lhe ter frustrado as expectativas… Muitas vezes, ao crescermos, deixamos de saber onde para a criança que fomos. Aquilo que tentei foi o desdobramento, que leva o adulto a falar à criança como se fossem pessoas autónomas e a lamentar, ele que é a parte responsável do duo, não ter conseguido concretizar nada do que estava previsto ou combinado. No fundo, está a pedir desculpa a si mesmo pela distância entre as maravilhas planeadas e os pesadelos que acabou por viver… Pode afirmar- se que o Má Luz tem duas partes distintas, separadas por uma morte, a do amigo do protagonista? Sim, é isso mesmo. A primeira está entregue a longos monólogos interiores, caóticos e depressivos. A segunda, depois da morte do amigo, Jacobo, corresponde a algo que impele o protagonista a conhecer- se melhor, quando deixa de interessar- se pelo amigo e transfere a sua pesquisa para a substituição do amigo: ocupa- lhe a casa, aproxima- se da amante de Jacobo… As relações entre este trio ( protagonista, amigo e a amante deste), um trio em que um deles está sempre fisicamente ausente ( ela não aparece explicitamente na primeira parte, Jacobo já está morto na segunda), remete, sem subterfúgios, para um livro de Marguerite Duras que me marcou muito e que quis homenagear à minha maneira, A Dor… Deixe- me citar: “A vida só dura enquanto alguém nos espera. Daí em diante é só sobrevivência”… No limite, isso reconduz- nos para a mais ampla das noções de orfandade. Imaginemos: alguém que vai de viagem e a quem os seus telefonam a saber se comeu bem, se não houve percalços no percurso, a que horas chega… Se não há ninguém para fazer esse telefonema, tudo muda de sentido… Mas esse pode ser o momento da autonomia, da liberdade… É, mas a liberdade pode ser algo muito doloroso… Este é um livro carregadinho de referências a outros livros, a obras, à vida e morte de escri - tores. Porquê? No contexto de alguém que se procura a si mesmo, e que passa boa parte do tempo fechado num apartamento, os livros impõem- se co - mo figuras presentes. Ele passeia em casa e vê estantes. Vai pensando no que acumulou e no que perdeu, identificando os livros como balizas, como pistas. O curioso é que também contam os livros que não lemos, mas a respeito dos quais retivemos uma pose, uma imagem, uma estética dos seus autores… Retive também aquela ideia de organizarmos as nossas bibliotecas à espera de que alguém as descubra e, quem sabe, as elogie… Todos nos defendemos com a justificação de que montamos e arrumamos uma biblioteca para nós mesmos. E se não for assim? E, se a um nível inconsciente, o fazemos para ( nos) mostrar? Imaginemos: eu tenho todos os livros de Saramago mas emprestei um. Não me faz falta, já o li duas vezes. Mas sei que, se alguém vier a minha casa, beber um copo, vai começar por notar a ausência daquele livro… E isso pode ser uma fonte de ansiedade. Depois, da mesma forma que há quem se mostre pelo carro que conduz ou pela roupa que veste, existem os que se apresentam com a respetiva biblioteca. Aí começamos a juntar os livros que comprámos por prazer, e para ler efetivamente, com aqueles que funcionam como etiqueta, como montra… A pergunta que deixo é esta: alguém que sabe que mais ninguém voltará a entrar em sua casa continuará a comprar os mesmos livros? Mais uma ideia do livro que gostava que abordasse: quando choramos a morte de alguém, estamos fundamentalmente a chorar por nós próprios… Bom, nós até começamos com uma competição diante da morte de alguém. De quem era mais amigo? Quem é que foi mais abalado por esta morte? Pensamos em tu - do, em todos, menos no morto, que até já não padece nem sofre… Como é o seu tempo de escrita, é mais disciplinado ou impulsivo? Eu escrevo muito por impulso porque não me dou bem com horários e dependo total e absolutamente da obsessão. Quando estou a fazer outras coisas e começo a interrompê- las para tomar notas, é sinal de que o momento da escrita se aproxima. Mas gosto muito de ler os outros, de passear… Tenho muitos cadernos Moleskine, cheios de notas, escritas onde quer que seja. Depois, para ser verdadeiro, não sei de todo porque escrevi mais de metade das minhas anotações… Há uma motivação óbvia, vulgar, que funciona sempre comigo: se penso na hipótese de morrer sem deixar escrito aquilo que quero, estarei sentado a escrever no momento seguinte… Na última pergunta, gostava de testar o meu castelhano: a personagem feminina chama- se Nadia, algo muito próximo de nadie. Ou seja “ninguém”, em português. É coincidência? O que é que lhe parece?