House of Cards: a felicidade de nos levar ao engano
Em House of Cards há uma cena que ultrapassa todas as barreiras: é aquele momento em que o Político atira mesmo a Jornalista para o túnel do metro. Não em sonhos, não num desabafo murmurado no escuro do gabinete. Ati - ra- a realmente, como se fosse a vida em Washington DC da atualidade, para a matar. Mas, como sabemos, é ficção.
Este segmento começa por uma banalidade: a jornalista ambiciosa ( Zoe Barnes por Kate Mara) que se deita com o político canastrão ( Frank Underwood por Kevin Spacey) para ter fonte; o político poderoso que que se deita com a jovem jornalista para ter canal. Tudo nos conformes.
Só que, na ficção televisiva do século XXI, perante espectadores cínicos e sedentos, as banalidades têm de ser apresentadas com excessos. Para não serem identificadas com o que são: lugares- comuns. “Sim, é o velho número do deitar, mas aqui, quando ela finalmente lhe descobre os pecados, ele mata- a mesmo.”
É assim House of Cards, uma grande série de banalidades e excessos.
O político sem escrúpulos que chega mesmo a POTUS, a mulher sem calor ( Claire Underwood por Robin Wright) que ascende a mulher do POTUS, o adjunto que se presta aos serviços mais indecorosos ao quase POTUS, a tasca de frango frito que abre de propósito apenas para o pré-POTUS e assim sucessivamente POTUS.
Por isso, é uma série que nos deixa desconfortáveis: leva- nos a gostar das banalidades porque são excessivas e dos excessos porque são banais. Não é que eles nos queiram iludir. Eles o que querem mesmo é levar- nos a gostar precisamente de nos sentirmos iludidos.
O engano, a mentira, o oportunismo, a traição e a falta de ética e de decência são tão comuns a todas as personagens que somos “forçados” a torcer por aqueles que estão mais convenientemente apetrechados para esse mundo em que triunfam os piores. É o contexto.
Em House of Cards, por mais pistas que o criador Beau Willimon ( a partir de uma novela original do inglês Michael Dobbs) plante na ficção para mostrar que nos quer enganar e que tudo é falso, acabamos sempre a levantarmo- nos do sofá para aplaudir o mais competente dos manipuladores, o maior dos infiéis, o melhor dos imorais.
Existem várias outras séries que nos deslumbram nesta época em que a televisão produz cinema mais competente do que o cinema. Outras séries tiram partido do formato das cerca de dez horas ( a temporada) para aprofundar as histórias, definir personagens complexas, sublinhar as contradições, e captam alguns dos recursos mais qualificados da escrita e da realização ( neste caso, David Fincher) e muitos dos melhores atores.
Mas, talvez devido às condições proporcionadas pelo sistema de distribuição inovador ( streaming) para que foi criada, House of Cards é aquela que melhor integra essa nova dimensão concetual: cada temporada é uma espécie de dez horas de cinema. E só o cinema consegue levar- nos ao engano com tanto entusiasmo e no meio de tamanha felicidade.