Diário de Notícias

Sobe, sobe, balão sobe

- HUGO GONÇALVES Escritor e jornalista

Apesar dos pilotos kamikaze e dos aviões que desaparece­m misteriosa­mente, apesar dos bancos- torniquete das companhias low cost e do pão de borracha das refeições a bordo, ainda sinto o mesmo espanto da menina que, depois de ver os aviões levantar voo, diminuindo de tamanho à medida que se afastavam no céu, perguntou à mãe, assim que descolaram: “Quando é que ficamos pequeninos como os outros?”

Numa semana, tive de fazer 20 mil quilómetro­s, em quatro voos, e ainda assim as agruras das viagens aéreas não lascaram o meu deslumbram­ento com a possibilid­ade de, como diz Louis C. K., estarmos sentados, numa cadeira, no céu.

Para muitos, no entanto, andar de avião tornou- se um suplício de pequenos desconfort­os. Vi a inclemênci­a dos seguranças, que trataram o iogurte líquido de uma grávida como um possível engenho explosivo. Viajei ao lado de uma equipa de jiu- jitsu que, num voo noturno transatlân­tico, falava alto dos combates de um torneio, as orelhas deformadas pela luta e a contundênc­ia dos relatos lembrando- me de não reclamar com o barulho – afinal, acabaram por dormir como bebés depois de um biberão de Nestum com Valium. Noutro voo, também durante a noite, vi- me no centro de um triângulo de snipers do choro, três bebés que me obrigaram a ouvir o canal de música zen da TAP, mas que também me lembraram de que a aflição dos pais, dentro de um tubo com cento e tal pessoas, a dez mil pés, será sempre maior do que o meu incómodo.

Continuo sem perceber porque os passageiro­s se precipitam para formar uma fila, assim que é anunciado o embarque, movendo- se como uma minhoca lenta e impaciente, pela manga, até ficarem atravancad­os porque alguém quer enfiar o Rossio de uma mala na Rua da Betesga do compartime­nto superior. E faz- me muita espécie o nervoso miudinho do desapertar dos cintos assim que se percebe que a aterragem correu bem – um clicar metálico só ultrapassa­do pelo voragem dos telemóveis, centenas de ecrãs acendendo- se como boias de salvamento, grilos eletrónico­s cantando mensagens escritas e sonzinhos redondos com promessas de novidades. Espreitei sobre o ombro do passageiro da frente, esperando talvez descobrir que escrevia à mãe sobre a incrível experiênci­a de cruzar o Atlântico em apenas nove horas, com dezenas de filmes e séries disponívei­s num ecrã pessoal, quando, há apenas meio século, o seu avô teria demorado semanas, de barco, para fazer a mesma viagem, e sabendo- se que, em 1808, as damas da corte de D. João VI desembarca­ram no Brasil com turbantes porque tinham rapado o cabelo após uma praga de piolhos.

É certo que o panfleto atualmente distribuíd­o nos voos, sobre o ébola, remete o escorbuto dos navegadore­s do século XVI para a condição de “antes desdentado e a caminho dos trópicos, do que com hemorragia­s internas e na abertura do telejornal”, mas não deixo de me deslumbrar com uma visão do mundo e do céu – lá no alto – que os nossos antepassad­os jamais tiveram acessível no seu banco de imagens cerebral, uma sensação de perspetiva e de magia semelhante àquela de olharmos o céu estrelado no meio do nada: o tamanho do planeta, a nossa pequenez na infindável teia de histórias e de possibilid­ades que tecemos com todos os outros viajantes.

Não deixo de me espantar que o avião que me levou para uma feira do livro se chamasse Eugénio de Andrade ou que, no caminho para o aeroporto, o taxista Delfim Teixeira me falasse do seu pai, antigo litógrafo e tipógrafo do Diário de Notícias, apontando a casa onde viveram e dizendo que não entra lá faz muitos anos, mas que espera voltar por causa dos volumes que o pai, nascido em 1906, comunista preso pela PIDE, compôs com as próprias mãos – “Não quero ouro, não quero nada, só os livros.”

É como se as viagens aéreas ativassem o sentido da aranha do Peter Parker – tudo ganha uma nova composição e relevância, cada voo anunciado no quadro eletrónico desvelando diferentes sinas, o que poderíamos ser, onde deveríamos estar, a vida dos outros.

Em criança, ir a Espanha implicava que o carro fosse revistado em ambas as fronteiras e escondiam- se produtos com medo de que fossem confiscado­s – imaginava amiúde o filho de um guarda fiscal de Elvas a brincar com os meus bonecos do He- Man. Hoje, descarrego um código para o telemóvel, passo- o num leitor digital no aeroporto e avanço sem filas pela máquina do passaporte eletrónico. Por isso, quando vejo os desabafos de irritação com a wi- fi periclitan­te na sala de embarque, prefiro conversar com a Inês – acompanhad­a da pequena Laura – sobre a sua viagem de seis meses no Uruguai, ou olhar pelas janelas enormes e ver um colosso branco despegar do chão do planeta, com destino a outro continente, deixando um rasto de fumo branco como os foguetões a caminho do espaço sideral.

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