Lampedusa não tira os olhos do mar
Rota do transporte de migrantes desviou- se para a Sicília, mas efeitos das tragédias passadas ainda pesam sobre a pequena ilha
Os habitantes de Lampedusa nunca tiram os olhos do mar. Conhecem bem de mais o que se passa a uns quilómetros da costa para se deixarem enganar pela beleza das águas cristalinas do Mediterrâneo. Na pequena ilha italiana, toda a gente sabe quando está para chegar um barco de migrantes, acontecimento raro desde que, a 3 de outubro de 2013, quase 400 pessoas morreram naquele que era considerado o pior naufrágio antes do que aconteceu no fim de semana passado.
Naquela data, como agora, todas as atenções se viraram para o problema. Os líderes europeus foram a Lampedusa, o pa pa foi a Lampedusa. E depois o assunto foi morrendo nas páginas da atualidade.
A partir daquela da ta – que transformou Lampedusa no rosto de uma das maiores tragédias humanas do século XXI –, os migrantes resgatados em alto- mar passaram a ser levados para a Sicília, uma ilha maior e com mais recursos.
Só em raras ocasiões o centro de acolhimento da pequena ilha – que chegou a ter mais população migrante do que autóctone –, em remodelação há mais de um ano, abre portas para acolher migrantes, excecional e temporariamente, até serem levados para a Sicília.
Mesmo assim, ao aviso da Guardia di Finanza, o dispositivo é montado com a celeridade do hábito: quando chegam, os migrantes têm à sua espera ambulâncias e pessoal médico protegido com fatos e máscaras, para a primeira inspeção das muitas que se seguirão.
“São transportados diretamente do porto para o centro e saem da ilha mal seja possível. Eles não querem ficar na ilha, nem sequer querem ficar em Itália”, realça Silvia Tempesti, assistente social na au- tarquia local, que já assistiu a “muitas situações difíceis”. Mulheres, idosos, crianças, todos “chegam muito traumatizados”, conta quem veio da grande cidade de Milão para Lampedusa por dez dias e acabou por ficar um ano. A tragédia faz o hábito O impacto das tragédias vividas em Lampedusa não se desfez com o desvio de rota. A contínua chegada de naufragados, mortos, doentes ou traumatizados teve efeitos permanentes no “pacato modo de vida da ilha” de 20 quilómetros quadrados, assinala o diretor do arquivo histórico. Lampedusa é agora mais fechada e desconfiada, em contraste com um passado de emigração e de confluência civilizacional e cultural. “Estamos num ponto de passagem”, resume Emanuele Grialese.
Os habitantes de Lampedusa “habituaram- se às tragédias”, reconhece Silvia Tempesti, assegurando que a população local nunca deixou de apoiar quem chega com o que pode. Numa das pontas da ilha, num penhasco sobre o mar, a Porta de Lampedusa – Porta da Europa, um monumento criado pelo escultor Mimmo Paladino, presta homenagem aos migrantes mortos e desaparecidos.
Os efeitos das tragédias humanas estenderam- se ao turismo, principal valia de uma ilha sazonal, fustigada por um inverno duro, mas abençoada com praias de areia branca, onde, mesmo de inverno, famílias italianas e pessoal internacional ali destacado arriscam um mergulho, esquecendo- se, por momentos, da dor afundada naquelas águas mornas.
Ninguém sabe ao certo quantas pessoas já morreram a tentar chegar à Europa através do Mediterrâneo, mas, desde o início de 2015, essa foi a sina de quase duas mil pessoas, num fluxo cada vez mais persistente.
Medo de encontrar um cadáver é real entre pescadores
Apesar de o turismo ter vindo a diminuir, os cinco mil habitantes que a ilha tem no inverno quintuplicam no verão. Mas “o turismo é sensível a imagens negativas” e “Lampedusa é sempre o primeiro nome destas tragédias, mesmo quando não há barcos a chegar”, explica o presidente da associação de armadores, Piero Billeci.
A ilha tem um ambiente de porto, os homens têm a pele enrugada de sal e sol e os cães deambulam em matilha. Todos os estabelecimentos fecham entre as 13.00 e as 16.00.
Dependente do exterior para muito, Lampedusa não tem hospital, apenas posto médico, e, três meses antes do parto, as grávidas são obrigadas a mudar- se para Palermo, na Sicília, que fica mais distante do que a Tunísia.
Sem cinema nem espaço de convívio, as crianças e os jovens não têm muito para fazer. No inverno, a maioria dos restaurantes estão fechados e os dois cafés abertos na rua pedonal competem com música aos berros, enquanto homens e mulheres confraternizam, em mesas separadas, durante o aperitivo, uma instituição em toda a Itália. Águas com mais do que peixe Os pescadores raramente saem para o mar durante o inverno, apesar dos anúncios a produtos frescos nas montras das peixarias do porto. O mau tempo e o isolamento trazem carne à ilha só uma vez por semana.
Os lampedusanos sabem bem que os barcos nunca deixaram de cruzar o Mediterrâneo, mar de temperamento “difícil e imprevisí- vel”, descreve Piero Billeci. Para os pescadores, naquelas águas não se captura apenas mero, atum e peixe- espada, mas também pessoas, e “o medo de encontrar um cadáver” é real. “Já quase todos os barcos tiveram um encontro, digamos assim.”
Existem cerca de 80 barcos com licença de pesca em Lampedusa, que são, muitas vezes, os primeiros a lançarem o alerta. Quando avis-
tam uma embarcação em apuros, informam as autoridades e colaboram com estas quando lhes é pedido. “Perdemos tempo quando avistamos os barcos, mas o que podemos fazer? Não salvamos as pessoas? Ajudamos e pronto. Não pensamos nas horas, paciência”, desvaloriza Piero Billeci, encolhendo os ombros.
“A União Europeia disse que ajudaria Lampedusa. Encheram a boca de milhões e milhões, mas não vejo nada. Já as nossas [ bocas] estão cheias de furos. Temos falta de escolas e de transportes”, diz.
Giacomo Sferlazzo, da associação local Askavusa ( palavra que significa “sem sapatos”, no dialeto local), critica a “retórica sobre as migrações, quer a da direita, que as descreve como um problema e uma invasão, quer a da esquerda, que vê os migrantes como vítimas e pobrezinhos, e não sujeitos políticos”. É esta visão que Porto M, o “espaço de reflexão” construído pela Askavusa, pretende dar, exibindo objetos pessoais, como roupas e calçado, biberões, bíblias e alcorões, e trabalhos artísticos de migrantes naufragados, bem co - mo boias, coletes e redes e material de propaganda contra as atuais leis e políticas migratórias.
Os que arriscam a vida no Mediterrâneo “chegam sem documentos, sem perspetivas, sem projetos” e “vão trabalhar para campos ou fábricas, sem contrato e sem direitos”, denuncia Giacomo Sferlazzo, defendendo planos de acolhimento baseados na autonomia e um visto de trabalho europeu ( e não nacional). Uma Europa unida “só para sanções é um contrassenso”, considera, avisando que o problema dos fluxos migratórios “não se resolve curando os efeitos”, mas tratando as causas de quem tem como “única alternativa meter- se num barco”.
Enquanto isso não acontece, os barcos, e as pessoas que neles se amontoam, a troco de milhares de euros pagos a traficantes, vão continuar a chegar. Alguns, os menos afortunados, vão juntar- se às embarcações que apodrecem num museu de má memória a céu aberto no porto de Lampedusa, que a ilha quer agora reduzir a cinza.