Há razões para Portugal fazer guerra ao Estado Islâmico
Portugal já foi uma potência do Médio Oriente, pelo menos do seu litoral no Índico, do Iémen ao Irão. Ainda estão por lá as fortalezas a prová- lo, como as de Ormuz, a da ilha de Qeshm ou a do Bahrein. Mesmo Baçorá, no atual Iraque, esteve envolvida nos jogos de alianças dos portugueses de Quinhentos. Mas agora que se fala do envio de 30 militares para o Iraque não é nesse passado distante que se deve procurar a lógica por trás da decisão. O melhor é olhar para as últimas décadas.
Nos anos 1980 vendíamos armas ao Iraque ( e também ao inimigo Irão, diga- se), em 1991 destacámos o navio São Miguel para apoio logístico à coligação internacional destinada a libertar o Koweit dos invasores iraquianos, e em 2003 enviámos a GNR para Nassíria, já depois de os americanos terem derrubado Saddam Hussein, mas com o país ainda por pacificar.
O objetivo da nova missão portuguesa é treinar o exército iraquiano para poder enfrentar o Estado Islâmico. O grupo jihadista, depois de ter- se emancipado da Al- Qaeda, apoderou- se de boa parte da Síria e do Iraque, indo ao ponto de conquistar neste último Mossul, cidade com um milhão de habitantes que há quase um ano se mantém em seu poder.
Além dos ataques aéreos aos jihadistas, a nova coligação internacional liderada pelos Estados Unidos está a dar formação e apoio logístico aos militares iraquianos, que no verão passado despiram a farda e abandonaram as armas à medida que as forças do Estado Islâmico avançavam.
Sabe- se que, além de alguns milhares de soldados americanos, estão já no Iraque militares australianos. E que apesar de os governantes de Bagdad garantirem que não precisam de tropas de combate estrangeiras, há também alemães, franceses e britânicos no país, incluindo no Curdistão semi- independente onde apoiam os peshmergas, os guerrilheiros curdos que têm sido heroicos na resistência ao Estado Islâmico. Há mesmo relatos de ocasionais trocas de tiros entre forças especiais canadianas e jihadistas.
Todos tradicionais aliados dos Estados Unidos, como Portugal. Aliás, o envolvimento português no Iraque nas últimas três décadas teve sempre que ver com a necessidade de estar ao lado dos americanos, mesmo quando em 2003 estes atuaram à revelia da ONU ao invadirem o país com a justificação de armas de destruição maciça. Na altura primeiro- ministro, Durão Barroso foi anfitrião da célebre cimeira das Lajes que deu luz verde ao ataque. E se a opinião pública portuguesa era contra a guerra, o mesmo se podia dizer da britânica e da espanhola e isso não impediu Tony Blair e José Maria Aznar de aparecerem também na foto ao lado de George W. Bush, o presidente americano suspeito de ter querido acabar a tarefa que o pai, Bush sénior, deixara incompleta em 1991, travan- do as tropas na fronteira koweito- iraquiana e permitindo assim a Saddam manter- se no poder .
Não foi um acaso que o ministro Rui Machete tenha confirmado esta semana o envio de tropas à saída de um encontro em Washington com John Kerry, o chefe da diplomacia americana. Portugal tem respondido sempre à chamada americana, fosse para o ataque à Sérvia por causa do Kosovo, fosse depois para o combate aos talibãs no Afeganistão.
Mas ver o envio de militares para o Iraque apenas como resposta automática a um pedido americano é errado. O terror islamita ameaça o mundo e Portugal não é exceção. Basta lembrar que quatro portugueses morreram nos atentados do 11 de Setembro de 2001 contra Nova Iorque ou que nas explosões de Bali, no ano seguinte, também um português foi vítima. Há também a ameaça teórica, uma obsessão dos fundamentalistas islâmicos com o Al Andaluz, no fundo toda a metade sul de Espanha e de Portugal.
A promessa de reconquista dessa antiga parte do mundo islâmico foi feita já por várias vezes por Ayman al- Zawahiri, o egípcio que sucedeu a Osama bin Laden à frente da Al- Qaeda. E também num mapa atribuído ao Estado Islâmico a Península Ibérica surge como um território cobiçado pelo califado proclamado em Mossul por Abu Bakr al- Baghdadi.
Há óbvias motivações locais na luta do Estado Islâmico. Sabe- se que antigos oficiais de Saddam ajudam na estratégia militar do grupo e explicam o seu sucesso, sobretudo no Iraque onde depois da invasão americana houve uma razia no exército, com a minoria sunita, associada ao antigo ditador, punida. E que a maioria xiita, catapultada para o governo de Bagdad via eleições, pouco ou nada fez para incluir as outras comunidades. Aliás, torna- se evidente que este confronto entre sunitas e xiitas ultrapassa em muito as fronteiras do Iraque, sentindo- se no Líbano, na Síria, no Bahrein e no Iémen. E que Arábia Saudita e Irão representam lados opostos da barricada, mesmo que, de momento, ambos apontem o Estado Islâmico como alvo a abater.
Mas basta pensar na capacidade de atração de estrangeiros, até americanos, europeus ( uma dúzia de portugueses incluídos) e australianos, por parte do Estado Islâmico para se perceber que além da perseguição aos cristãos e outras minorias existe uma tentação de guerra global, na linha da Al- Qaeda. Que isso seja feito por células quase autónomas ou por grupos que juram uma remota fidelidade a Al- Baghdadi não deve tranquilizar. Significa, sim, que destruir a cabeça pode não ser suficiente para derrotar o monstro.
Ora, qualquer esforço para derrotar o Estado Islâmico é relevante. Nem que seja os tais 30 militares. Portugal não pode ser neutral nesta guerra. E deve assumi- lo.
“Portugal já foi uma potência do Médio Oriente, pelo menos do seu litoral no Índico, do Iémen ao Irão. Ainda estão por lá as fortalezas para prová- lo, como as de Ormuz, a de Qeshm ou a do Bahrein. Mas agora que se fala do envio de 30 militares para o Iraque não é nesse passado quinhentista que se deve buscar a lógica da decisão”