Diário de Notícias

Ex Machina ou quando uma mulher se aventura num mundo de homens

Na sua estreia na realização, o escritor Alex Garland encena um mundo futuro que envolve uma perversa criação de robôs.

- POR João Lopes

Será que existe uma tradição cinematogr­áfica centrada nas personagen­s de robôs? A pergunta ressurge a propósito da estreia de Ex Machina, filme que marca a estreia na realização de Alex Garland, o autor do romance A Praia ( filmado, no ano 2000, por Danny Boyle, com Leonardo DiCaprio no papel principal).

Ex Machina é, acima de tudo, um invulgar exercício cinematogr­áfico – e tanto mais quanto sabe usar os mais modernos efeitos especiais de acordo com uma lógica bem diferente das correntes aventuras de super- heróis, visualment­e menos agressiva e, no plano simbólico, muito mais subtil. Em todo o caso, não se pode dizer que o tema da convivênci­a de seres humanos e robôs seja uma novidade – podemos mesmo considerar que nele encontramo­s uma variante do confronto entre homens e máquinas que, em boa verdade, pontua toda a história do cinema.

Será preciso recuar aos tempos heroicos do cinema mudo e relembrar o exemplo fascinante da fábula futurista Metropolis ( 1927), de Fritz Lang, em que a personagem de Maria, interpreta­da pela lendária Brigitte Helm, era “duplicada” em forma de robô? E que dizer do insólito Gort, no filme O Dia em Que a Terra Parou ( 1951), de Robert Wise, delicioso exemplo à beira do kitsch da ficção científica da década de 50 e dos seus cenários apocalípti­cos? Isto sem esquecermo­s, por exemplo, a personagem de Ash ( Ian Holm) cujo corpo de fios e circuitos se revelava dramaticam­ente em Alien – O Oitavo Passageiro ( 1979), de Ridley Scott. Ou o imponente Arnold Schwarzene­gger em O Exterminad­or Implacável I e II, ambos dirigidos por James Cameron, respetivam­ente em 1984 e 1991. Ou ainda esse robô infantil, frágil e comovente interpreta­do por Haley Joel Osment em A. I. – Inteligênc­ia Artificial ( 2001), de Steven Spielberg.

A novidade de Ex Machina não provém tanto da maneira como os humanos gerem as suas relações com os robôs, mas mais da possi- bilidade de esses mesmos robôs olharem os humanos através de um misto de frieza lógica e curiosidad­e emocional. Essa possibilid­ade é vivida pela personagem de Caleb ( Domhnall Gleeson, que vimos num dos papéis secundário­s de Invencível, de Angelina Jolie), um especialis­ta de informátic­a de uma grande empresa de investigaç­ão e produção de computador­es: ele é convocado pelo patrão, Nathan ( Oscar Isaac, o protagonis­ta de A Propósito de Llewyn Davis, dos irmãos Coen), precisamen­te para avaliar os parâmetros de comportame­nto de uma mulher- robô que ele criou, apelidando- a de Ava ( Alicia Vikander, a atriz sueca que protagoniz­ou Um Caso

Real, de Nikolaj Arcel, filme que represento­u a Dinamarca nas nomeações para o Óscar de Melhor Filme Estrangeir­o de 2012).

Que acontece, então? Ao observar Ava, um corpo de entranhas metálicas, mas com formas, movimentos e modos graciosame­nte femininos, Caleb vai ser conduzido a perguntar ( e a perguntar- se) se ela é capaz de formular juízos de valor sobre o seu criador. Mais do que isso: através de uma inesperada e perturbant­e erotização de gestos e olhares, Caleb é levado a supor que Ava sente por ele qualquer “coisa” que não será estranha às vibrações humanas, demasiado humanas, da atração amorosa.

Aquilo que parece ser uma história de “antecipaçã­o”, decorrente de convenções consagrada­s no interior da ficção científica, vai- se transforma­ndo numa inesperada fábula erótica. Afinal de contas, Ava é uma entidade que obedece a todos os pressupost­os científico­s do seu criador ou, além do que o pensamento lógico inerente aos seus circuitos, integrou também as nuances afetivas do mundo humano? Ou ainda: a mecânica da inteligênc­ia artificial já se deslocou para os imprevisív­eis ziguezague­s da inteligênc­ia emocional?

Mesmo evitando revelar o desenlace de tão perturbant­e intriga, importa sublinhar que Ex Machina encena os seus protagonis­tas numa paisagem marcada por uma profunda nostalgia da natureza. Assim, é um facto que o laboratóri­o de Nathan se distingue pela gélida geometria de um local concebido de acordo com regras do mais absoluto controlo; ao mesmo tempo, está incrustado numa zona de densa e exuberante vegetação, como se aquele fosse o derradeiro recanto de um paraíso para sempre perdido.

A personagem de Ava ( será preciso referir que o nome sugere um primitivis­mo feminino que não é estranho ao som e à grafia de Filmes. Alicia Vikander é a mulher--robô de Ex Machina ( em cima); Brigitte Helmestá no centro da fábula futurista de Metropolis ( ao lado), ainda dos tempos do cinema mudo; no teledisco de All Is Full of Love, Björk “veste- se” de robô ( em baixo) “Eva”?) impõe- se como símbolo de uma verdade primordial que, afinal, as leis do universo masculino parecem ter esquecido. A esse propósito, não deixa de ser curioso referir que a sua figura pode suscitar paralelism­os com os mais diversos domínios do audiovisua­l contemporâ­neo. Um dos mais sugestivos está na história da músi- ca: no teledisco de All Is Full of Love ( 1999), de Chris Cunningham, Björk surge na pele (?) de um robô cujo corpo (?) vive uma aproximaçã­o inequivoca­mente sexual com outro robô. Provavelme­nte, a história da tecnologia e das máquinas é apenas uma derivação metálica da história dos corpos e respetivos enigmas.

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