Memórias para o ano final de um milénio na vida de J. Rentes de Carvalho
Olivro Pó, Cinza e Recordações começa no dia 15 de maio de 1999 e termina nesse mesmo dia do ano seguinte. É do género literário da diarística, peça pouco habitual entre a maioria dos escritores portugueses e no qual o escritor J. Rentes de Carvalho já caminha pela terceira vez, pois publicou Portugal, a Flor e a Foice, um relato cáustico sobre o país de 1974 e 1975, e Tempo Contado, sobre o mesmo país, mas passado nos anos de 1994 e 1995.
Para quem tem na memória o livro Foice este Pó é bem menos tonitruante porque o autor não representa o mesmo tipo de ceifeiro de memórias, nem os tempos são os mesmos. Nada que impeça o interesse num volume que relata o fim do segundo milénio e o princípio do terceiro, um ano que para quem o viveu era uma espécie de fiel da balança entre o passado e o futuro.
Não sendo o seu texto apocalíptico como os autores mil anos antes encaravam o mundo, não deixa de falar do fim do mundo: o próprio. O tempo de um autor que entra nos seus setenta anos e sobre o qual diz: “Eu, que não esperava chegar à idade de Cristo, sinto- me um pouco como o passageiro que, por distração, se enganou no comboio e, embora ache curioso o percurso, interessante a paisagem, se pergunta que distância terá ainda a linha e que surpresa o espera na estação términos.”
Por isso este diário do anos 1999- 2000 é como se um romance de viagem. Começa com o regresso à aldeia e continua com descrições de um Portugal que uma grande parte dos cidadãos já desconhece fisicamente e só o reconhece nos chavões do interior profundo, ou esqueceu. Uma realidade que até incomoda o autor que a admite ao dizer “tenho a impressão de que fujo” de escutar certas lengalengas derrotistas.
Diga- se que muitas vezes o autor confessa o desejo de voltar para a terra onde mora a maior parte do ano: Amesterdão – ou como escreve: Amsterdam. Afinal, J. Rentes de Carvalho vive na cidade holandesa desde 1959, onde foi professor de Literatura Portuguesa desde 1964 até 1988. Foi naquela capital que escreveu crónicas e ficção, produção longamente ignorada em português e elogiada – e comprada – naquele país, até que o editor da Quetzal decidiu transportar os primeiros romances para a língua original do autor. Fez sucesso.
Voltemos ao diário Pó, Cinza e Recordações. Aqui cabe tudo, com o escritor a ter especial prazer na palavra mordaz e em muitas referências politicamente pouco corretas. Tal como a crítica à “masculinização feminina” e à “efeminação masculina”. Ambas o irritam, sendo que no segundo caso refere: “É vê- los, machos de metro e noventa, coquetes nas suas blusinhas de renda, a embalar os recém- nascidos com ademanes de tia solteirona.” Ou na crítica ao rumo perdido da imprensa: “O jornal, que no passado a opinião pública considerava um senhor, tornou- se uma comadre”; que depois de Eça, Balzac, Zola, Flaubert, Tolstoi, Graham Greene é provável que “o talento se tenha de súbito esgotado” pois nada há para ler de interessante; também que “não se podem fazer comentários negativos sobre a arrogância do islamismo”, que é “malvisto não demonstrar um intenso carinho pela raça negra”, que “todos os pobres são implicitamente bons”...
Como estamos hoje em dia de comemorar a Revolução, não se pode deixar de referir o verbete desse dia: “Feriado, a comemorar o 25 de Abril de 1974. Creio que entre dias santos e feriados nacionais, Portugal conta mais de trinta dias livres. Os economistas e os empresários barafustam enquanto os políticos preferem calar- se, não vá fugir a clientela. O povo sabe que ninguém ousará mudar hábitos criados pela democracia.”
Quinze anos depois muito disto mudou e as memórias de J. Rentes de Carvalho confirmam que o passado pode ser cotejado aqui.
“Foi muito de esquerda durante um tempo, chegou mesmo a escrever: ‘ Que os oprimidos caguem nas fachadas de luxo’.”