Vamos por partes
Mia Couto ( n. na Beira, Moçambique, em 1955) é muito mais do que um biólogo ou do que um escritor. Quem já o leu, em crónica ou ensaio, mas preferencialmente em ficção ou em poesia, sabe que ele merece ser apresentado como o “escritor- biólogo”, porque teima em criar palavras, revitalizando uma língua que, assim, com as novidades e as aventuras, diferentes na medida em que o seu habitat é Moçambique, ganha seguramente mais do que com acordos normalizadores e estranguladores. Nalguns casos, essa capacidade criativa parece um jogo divertido, se for olhada apenas à superfície; em regra, significa uma inquietação que cruza, em doses felizes, a inquietação científica e a intuição artística.
Curiosamente, neste Vinte e Zinco ( publicado em 1999, para assinalar os 25 anos do 25 de Abril), o recurso a essas invenções está longe de ser um trunfo principal. Numa história que separa brancos e pretos mas cruza dementes com “normais”, feitiçarias com leis, natureza com fantasmas, o autor parece mais preocupado com a cadência da escrita, enriquecida de pormenores inesperados. Acontece aqui: “Diz- se que ele cegou logo cedo, na poscedência do parto. Estava o pai aguardando os quenquelequezês, a apresentação do menino à lua. A criança repousava num cesto, resguardado desses maus caimbos que impedem o encerramento da cabeça. As doenças entram pela moleirinha, essa fresta onde não somos nem corpo nem alma. Foi então que ele foi mordido. Mais rasteira que poeira, veio essa cobra, a tal que rasteja só pelo luar. Não é que é noturna, não. É bicho luadeiro. Morde doce, quase uma ternura de dois canos. É o que se diz, verdades: neste mundo, só inspiram medo os açucarosos venenos. A serpente lhe fincou os dentes e, no imediato, seus olhos se azularam, opacos de porcelana. E nunca mais ele leu em nossa visibilidade.”
A criança em questão é Andaré Tchuvisco, que cresce a ver mais que muitos. Dessa cegueira, olhada como seletiva por uns quantos, desconfia Lourenço de Castro, inspetor da PIDE, torturador emérito por convicção, que se deixa amargar por prantos infantis e angústias sem lógica, tudo testemunhado só pela mãe, Dona Margarida, que lhe aquece o leite e lhe abre a cama. O pai, Joaquim, punia os pretos atirando- os do helicóptero, lá em cima. “Esbracejam no ar como se quisessem ganhar asas”, diz ele ao filho. Presente está, também, uma irmã de Margarida, Irene, apontada como doida, por dançar ao som de música que mais ninguém ouve, por consultar feiticeiros e privar com os da outra raça. Irene filosofa em exclusivo para os seus cadernos: “Cegueira é ver o nada. Não ver nada é a morte.” Não esqueçamos Jessumina, presumida feiticeira, com frasquinhos e lengalengas, igualmente pensadora: “Vinte e cinco é para vocês que vivem nos bairros de cimento. Para nós, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia ainda está por vir.” No índice onomástico, cabem igualmente Marcelino, um tio Custódio, um padre Ramos, alguns pides auxiliares, incluindo um negro, arquétipos ou não, ao serviço de uma narrativa que abre a 19 de Abril e se extingue – ou pelo menos se afasta da nossa vista – no dia 30 do mesmo mês.
Com esta gente, colonos e colonizados, com esta janela de tempo, com noites fantásticas, dias quentes e uma imaginação prodigiosa, cria o autor um romance curto e assertivo, capaz de gerar, quase página a página, um amargo de boca. Sobretudo quando percebemos, sem hipótese de subtilezas ou antídotos, que a revolução, de facto, não nasce para todos nem choca ao mesmo tempo com os supostos destinatários. Dá que pensar, mais do que os discursos de efeméride. E até os mais otimistas face ao devir do mundo ganham mais uma “certeza”: vamos sim, mas vamos sempre por partes.