Mais umas linhas sobre a falecida ideia
A proposta do visto prévio teve o destino merecido: falou- se um pouco e escorreu pelo ralo, envergonhada
Pelas fotos tinham ar alucinado. E eram alucinados ( ele estava preso por bater na mãe e ela fora condenada a 18 anos por matar um cliente). E foram considerados alucinados a ponto de serem internados na ala psiquiátrica dum hospital. Isto que conto soube- o por um jornal, logo, os seus jornalistas deveriam conhecer a perigosidade do par. A história era contada em duas páginas. No hospital, o homem que batia na mãe e a mulher que atropelou um cliente para o roubar e com ele no chão lhe esfaqueou a cabeça conheceram- se, apaixonaram- se e fugiram num domingo, dois dias antes de a notícia ser publicada.
Depois da fuga, o casal roubou um carro e rumou para uma casa da aldeia do homem. Ele vivia numa freguesia de 925 pessoas ( censo de 2011), onde todos se conhecem e quotidianamente se cruzam. De madrugada, o homem foi a casa dum amigo, deixou lá a companheira e, no dia seguinte, partiu sozinho para assaltar uma pastelaria. Na estrada encontrou uma barreira da GNR, atirou o carro contra o carro dos guardas, fugiu a pé pelos montes mas foi preso. Alucinado. Já vos disse? Eu sei, é só para lembrar que os jornalistas do jornal também o sabiam.
Como já disse, a notícia tinha duas páginas. Na par, havia uma caixa sobre um pormenor e com este título: “Amigo que deu abrigo alertou as autoridades.” No texto, o jornal repetia que o cidadão XXX – isto sou eu a ter o cuidado de não dar o nome, o jornal pôs o nome verdadeiro – denunciou os fugitivos: “(...) na primeira oportunidade alertou a GNR”. O jornal falou com o pobre homem, “ainda assustado”. O texto é ilustrado por uma foto deste, à porta, falando com a repórter do jornal. A foto é feita de longe, é de supor que o homem “ainda assustado” não quis ser fotografado. A legenda: “XXX [ o jornal voltou a pôr- lhe o nome verdadeiro] acolheu casal”...
O que eu quero dizer é o seguinte: um alucinado, que daqui a meses será posto à solta, sabe que na sua aldeia há um amigo que o denunciou. Não suspeita, sabe. Escrito, e até em letras gordas, e fotografado por um jornal. Com o nome escarrapachado e foto tirada à socapa, mas visível, à porta de casa. Aquele cidadão estava, no dia seguinte, “ainda assustado”, disse o jornal. Eu tenho a certeza de que hoje, cerca de dois meses depois da notícia, o pobre homem continua assustado. Ele deve tremer a pensar na data dum determinado mandado de soltura.
E era aqui que queria chegar. Eu sei que os jornais precisam de ter um órgão regulador que controle aquele enorme poder que eles têm. E sei que a canalhice e a burrice ( mais esta) de alguns jornalistas os leva, aos jornais, a cometer erros que podem ter consequências graves, até fatais. Nas duas páginas irresponsáveis narradas acima, caso um drama aconteça, os advogados do patrão saberão escamotear as culpas do jor- nal – o direito de informar, um bem sagrado, também pode ser refúgio de canalhas e/ ou burros. Por isso é bom que haja uma entidade específica que proteja todos, e sobretudo os mais frágeis, dos desmandos do jornalismo. Uma entidade que esteja atenta, critique e multe quando crianças vítimas de crimes são fotografadas e inocentes são difamados. E, como no caso narrado, cidadãos são colocados em perigo pela irresponsabilidade jornalística.
Ora, por estes dias o que preocupou os deputados dos grandes partidos foi desviar a vigilância aos jornais para a sua coutada. Os depu - tados queriam mais um órgão ( comissão mista) ao qual os jornais deveriam submeter para visto prévio o seu plano de cobertura das eleições. Desde logo, a sugestão do visto prévio até inoportuna foi, pecado menor ( o maior é que é indefensável, ponto final), porque apresentada nas vésperas da data, o 25 de Abril, que aboliu a censura. Depois, o processo foi deixado para a ponta final da legislatura, a poucos meses da campanha eleitoral, dando a ideia duma emboscada. E feita por eles ( deputados) à pressa, pedia, paradoxalmente, aos outros ( os jornais) planeamento... Enfim, uma trapalhada. A proposta teve o destino merecido: falou- se um pouco e escorreu pelo ralo, envergonhada.
Mas o episódio vale pela confirmação da igualdade vigente, em que uns são mais iguais do que outros. Ca sos infames de jornais – co - mo oferecer publicamente um cida - dão a próxima e mais do que provável tareia ( no melhor dos casos...) por parte dum alucinado – passam sem a punição necessária. Toca ao povo, indiferença. Mas quando toca aos pretendidos abusos dos jornais sobre os representantes do povo estes já são tesos ( enfim, durante algumas horas).