Diário de Notícias

“Continuo a levar porrada dos dois lados. Para uns sou de direita, para outros sou de esquerda”

40 anos da Constituin­te: as memórias de quem votou pela primeira vez a 25 de abril de 1975 Consenso entre partidos será tema no último discurso do Presidente Cavaco Silva no 25 de Abril

- NUNO AZINHEIRA

O encontro estava marcado para as 19.30. Não houve atrasos. “Desculpa ter sido um jantar tão cedo, mas eu e a minha companheir­a levantamo- nos muito cedo por causa das miúdas mais novas”, explica- me logo depois de me estender a mão num cumpriment­o fraterno. Paulo de Carvalho, o herói acidental do 25 de Abril, tinha recebido o meu telefonema ao início da tarde desse mesmo dia, quarta- feira. “Quando é que podemos almoçar: quinta ou sexta?”, perguntei- lhe, sem grande margem de manobra. O cantor pensou três segundos e deu- me a resposta que eu não queria ouvir. “Nenhum dos dias. Nesta semana a minha agenda está tramada.” Sem se deter: “Mas podemos jantar hoje.” Feito.

A entrada na Associação 25 de Abril, entre o Bairro Alto e o Chiado, em Lisboa, faz- se por uma porta estreita. “É um sítio muito giro, nunca tinha vindo cá. E está cuidado, não está ao abandono, vê- se que tem vida, que é frequentad­o. É bom que assim seja, até porque a Associação 25 de Abril tem outro tipo de responsabi­lidades”, diz o homem que cantou a senha que fez soltar a liberdade. “Tudo por acaso”, dirá mais à frente quem recusa estatuto especial. “Fui eu co - mo poderia ter sido outro.”

A ementa do restaurant­e, que fica no primeiro andar, abre- se farta e tentadora à nossa frente. Paulo de Carvalho explica que hoje é “muito mais comedido”. “Há uns anos era um alarve a comer, agora estou mais calmo, como menos. E sinto- me bastante melhor, até porque já vou fazer 68 anos.” Não perde tempo a escolher. “Pataniscas de camarão com arroz cremoso de espinafres. Gosto, parece- me bem.” Aprovo a escolha e deixo- me levar pelas bochechas de vitela no forno. “Também temos bochechas de porco, mas eu recomendo- lhe as de vitela. São menos usuais e, quanto a mim, são melhores. Vá por mim”, diz- me a funcionári­a. Vou. Mais tarde constato que não me arrependo da escolha.

“E o que vão beber?”, ouvimos. “Eu sou dos vinhos. Tinto de preferênci­a. Nunca com menos de 14 graus”, diz- me à laia de aviso, enquanto a funcionári­a, diligente, aguarda. “Sou dos vinhos, mas não sou um especialis­ta.” Calha bem, eu também não. Perante o embaraço da escolha, aceitamos sugestão alheia. “Porque é que não experiment­am o nosso vinho da ca - sa, que é o Companhia das Lezírias Senhora de Alcamé?”. Que sim, dizemos. Venha o da casa.

A relação de Paulo de Carvalho com o álcool nem sempre foi pacífica. “Aos 15 apanhei uma daquelas bebedeiras de caixão à cova: testei cinco qualidades de álcool na mesma noite. É aquela estupidez habitual na idade: bebe- se sem saber porquê, só porque os amigos bebem.” A noite animada teve consequênc­ias: “Estive até aos 40 anos sem tocar em álcool. Nem uma gota. Depois, numa noite com amigos, acabei por provar um vinho que me soube bem.”

Paulo de Carvalho cultiva o prazer da mesa. Vê- se. “Gosto muito da conversa, de cultivar o prazer de estar numa refeição com um conjunto de amigos. A mesa permite- nos descobrir mundos, conhecer pessoas. Mas também lhe digo: um bom livro às vezes substitui algumas companhias.”

A sala do restaurant­e, vazia às 19.30, tem agora mais três mesas ocupadas. De vez em quando, pousamos os talheres. A conversa nunca para. Seriam momentos ideais para puxar de um cigarro se o restaurant­e o permitisse e os comensais não tivessem há anos deixado o vício. “Deixei de fumar há 27 anos. E engordei assim qualquer coisa ligeira como 18 quilos em dois meses. Fumava três maços por dia. Já não era prazer, era estupidez”, explica. “Na maior parte dos casos”, os cigarros jaziam por fumar, em cilindros de cinza acumulados nos cinzeiros.

“Está tudo do vosso agrado?” A conversa é interrompi­da pelo chef Pedro Honório. Perante a resposta positiva, o responsáve­l olha nos olhos de Paulo de Carvalho e diz: “No final vou querer uma foto consigo.” O cantor sorri. “Claro que sim, com todo o gosto.” A cobrança será feita com o smartphone.

As pataniscas de camarão do cantor são comidas com calma. “Estão boas, sequinhas”, comenta, enquanto olha para a garfada que se prepara para engolir. “Gosto muito de comida tradiciona­l portuguesa. Já fiz muitos quilómetro­s para ir comer a um restaurant­e só por causa de um prato específico”, conta. Mas mete travão a fundo quando se fala em determinad­os petiscos. “Não consigo gostar de mão de vaca, pezinhos de coentrada, essas coisas. Dizem- me que são gelatinosa­s, mas eu não sei, nunca provei. Portanto, não tem que ver com isso. Faz- me impressão.” De resto, come tudo. Têm é de lhe pôr o prato à frente, porque cozinhar é uma cena que não lhe assiste. “Só sei fazer umas omeletas engraçadas, sobretudo de cebola; uns ótimos pimentos padrón, mas que não têm segredo nenhum, e uns bifes que a minha filha Maria adora. Quando a mãe faz não gosta, se sou eu, come tu - do.” Sorri como se mostrasse um prémio.

Maria tem 11 anos, é a quarta de cinco filhos. Ela e a irmã mais nova, Flor, de 6, são fruto da união de Paulo de Carvalho com Susana. Aos 68 anos, o cantor é um pai mais presente e constante. “Não sei se há uma forma diferente de ser pai depois dos 50 anos [ os restantes filhos são Bernardo, artisticam­ente conhecido como Agir, de 27, Mafalda Sacchetti, 38, e Paulo Nuno, de 47], o que sei é que criei condições para ter mais tempo

para as minhas filhas. De qualquer forma, sempre estive muito perto dos meus filhos, mesmo nas separações. Sempre estive lá quando foi preciso, exceto no caso do primeiro filho – mas eu tinha 21 anos, sabia lá o que era ser pai”, diz.

Homem de causas e relações ( leva cinco casamentos no currículo...), consegue conviver com uma mentira mas não perdoa a traição. “Há mentiras e mentiras. Há mentiras piedosas ou outras que têm que ver com as circunstân­cias, mas não perdoo a deslealdad­e. Isso não. E não estou a falar de mulheres. As maiores deslealdad­es de que fui vítima foram de homens. Nada dói tanto como a deslealdad­e de um amigo.”

É por isso que, “apesar de discordar do tanto de mal que tem sido feito”, não deixa de ser amigo de Pedro Passos Coelho, que conhece “há muitos anos” e que trata por tu. “É um homem honesto e sério, até prova em contrário. Mas é claro que não concordo com o que o Pedro tem feito e ele é o primeiro- ministro, logo o responsáve­l.” No entanto, mostra- se convicto de que “em muitos casos ele tem de aguentar”. Numa ou noutra conversa que tive com ele percebi que ele próprio está em desacordo com muita coisa que tem de se fazer. É muito complicado.”

Tão complicado que Paulo de Carvalho recusa futurologi­a política. “Palpites para as legislativ­as? Nem pensar. Os portuguese­s gostam muito de alternânci­a, mas já vi tanta coisa que não arrisco.” Uma coisa é certa: as coisas estão mal. “Muito mal. Há razões para a contestaçã­o, mas não é só culpa dos governos, sejam quais forem. Somos nós que os colocamos lá.”

A conversa avança e aquece. Em mais de duas horas de jantar, Paulo de Carvalho nunca pede reserva sobre o que diz. Em cima da mesa, o gravador vai guardando tudo. “Não tenho nada a esconder. É assim que penso, já não tenho idade para ter medo de dizer o que penso.” Há um lado ativista dentro dele que nunca morrerá apesar de a política partidária lhe desagradar “cada vez mais”. “O que me agradam são pessoas. Sinto grande necessidad­e de participar ativamente na vida política. Mas não através dos partidos. Faço- o à minha maneira, com a minha música. E quando atuo em concertos de políticos. Mas não faço para quem me paga, faço para aqueles em quem acredito.” E isso é também fazer política. Tal como fez, a seguir ao 25 de Abril quando, a pedido “de um grupo de gente em que estava o Sá Carneiro”, foi o autor do hino do PSD. Abre os olhos, levanta um pouco o tom e corrige- me. “Do PSD, não. Do PPD! Não confundir as coisas. A linha programáti­ca do PPD era mais à esquerda do que a do PS”, graceja.

Hoje não o voltaria a fazer. Não é que a expressão “Paz, pão, povo e liberdade” tenha deixado de lhe fazer sentido. “Não fui eu que mudei, eu continuo a pensar o mesmo. Aquela letra para mim continua a fazer sentido. Para o PSD é que não me parece que faça.”

O facto de ter escrito o hino social- democrata pesa na ideia política que muitos fazem dele. “Continuo a levar porrada dos dois la- dos. Para uns sou de direita, para outros de esquerda”, diz, admitindo que é uma situação caricata mas “muito confortáve­l”. “Se calhar, as pessoas andam distraídas e o excesso de informação desinforma- as”, diz, sublinhand­o que sempre votou na mesma força política, o PCP. “É uma questão de coerência, ainda não me enga-naram. Nunca foram governo. Se alguma vez forem, logo verei se cumprem ou não o que dizem.” Sorri: não acredita que esse dia alguma vez surja.

Apesar de ter sido militante do PCP entre 1980 e 1987 (“quando já ninguém ganhava nada com isso, ao contrário de outros que no dia 26 de abril já estavam à porta do partido”), diz que não é comunista, “longe disso”. “Tenho grande respeito pelos comunistas, mas não sou comunista. O PCP é o que está mais próximo de representa­r as minhas ideias”.

É por respeito, também, que Paulo de Carvalho continua a cantar, sempre que lhe pedem, o E depois do Adeus, a canção que se tornou senha de Abril, há 41 anos. “Só não sou malcriado com a escolha do meu repertório porque devo muito a muita gente e às pessoas que gostam de mim e que querem ouvir o E depois do Adeus e a Nini ou Os Meninos do Huambo. Às vezes, apetece- me dizer ‘ Não canto mais isto!’” Ser um símbolo da revolução não se tornou um fardo demasiado pesado. “O que pesa”, diz, enquanto desfazemos as tartes de queijo com frutos vermelhos, “não é o facto de as pessoas me pedirem para cantar o E depois do Adeus. É uma cantiga muito bonita, tornou- se importante, é natural que as pessoas a peçam. O que pe - sa é ligarem- me sempre só a essa música e ao 25 de Abril. O que pesa é que não se preocupem com o que eu ando a fazer. Isto é muito chato.” Chato e um sinal da “incultura de uma série de gente com responsabi­lidades e que não é capaz de informar”. “É muito fácil usar o rótulo de sempre. Ora, acontece que eu gravo um disco de três em três anos. Depois desses êxitos, já fiz muita música, já escrevi muitas canções. Mas as pessoas não sabem, estão presas ao passado.” O 25 de Abril não passou por aqui.

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a senha que começou o 25 de Abril. E o hino do PPD,
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Paulo de Carvalho, músico, cantou E depois do Adeus, a senha que começou o 25 de Abril. E o hino do PPD, a convite de Sá Carneiro
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