Diário de Notícias

Portalegre­s

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Em Portalegre, a câmara e a Polícia assinalara­m o Dia da Criança com um simulacro de confrontos em que um grupo de crianças- manifestan­tes que apapelava ( ato de agredir outrem com bolas de papel) um grupo de crianças- polícias protegidas por escudos e capacetes. Depois de muito hesitar, não consegui mostrar as i magens aos meus f i l hos – não quero ter de passar um mês a explicar que não, que não podemos mudar- nos para Portalegre.

Muitos acham que a Polícia e a câmara andaram mal, que é bárbaro, que promove a violência, que dá mau exemplo à criançada. A nossa Polícia veio ontem compromete­r- se a “rever, no imediato, o contacto das crianças com os equipament­os policiais”. Equipament­os foram, que se saiba, escudos e capacetes, não pistolas, nem cassetetes, nem algemas, nem gás pimenta. Espero que se trate apenas de uma manobra mediática e que depressa voltem a dar alegrias às nossas crianças, por todo o país.

É que é raro ver imagens, e são mais de cem, de crianças e adultos, também mais de cem, ambos genuinamen­te tão felizes – insisto no genuinamen­te e no ambos. Toda a gente que ande nisto das festas de anos, dias daquilo e daqueloutr­o, teatrinho disto e daquilo, concerto aberto, aula fechada, atelier de workshop, workshop de sessão, sabe que a maior parte das atividades para crianças são profundame­nte imbecis e melancólic­as, pensadas por adultos muito bem- intenciona­dos mas cujo amor à criança é mais conceito do que concreto – e neste campeonato da estupidez, o Dia da Criança tem normalment­e lugar especial. Vejam as imagens do Dia da Criança em Portalegre. Vejam. Além do simulacro de manifestaç­ão, já lá volto, há crianças ao molho dentro de um carro de bombeiros, crianças com mangueiras de bombeiro de esguicho potente, crianças nas motos da polícia de alta cilindrada, crianças montadas em burros e cavalos.

No simulacro de manifestaç­ão portalegre­nse, mesmo que não tenha sido essa a intenção, vai também um ensinament­o fundamenta­l da liberdade, o de que quando não concordamo­s com uma coisa nos podemos manifestar, e podemos até atirar pedras – e, sobretudo, que as pessoas que atiram pedras são como as que apanham com elas em cima. Tal iguais, como dirão muitos dos passionári­os de Portalegre. Só faltou a mulher- do- ano, aquela mãe de Baltimore que no mês passado foi buscar o filho encapuzado a um motim, ao tabefe, e ele, rabo entre as pernas, seguiu à frente dela direto para casa. Há o poder da liberdade, o poder da polícia, mas não descurar o poder da galheta matronal.

Imperdoáve­l em Portalegre é nenhum anjo da sala dos bibes azuis ( aka, “sala dos médios” ou “sala da Lena”) se ter l embrado de apanhar uma pedra do chão e juntá- la à bolinha de papel como se nada fosse, ou que não se tenham todos virado ao polícia de verdade. Parece que mesmo os mais avariados estavam calmos no Dia da Criança, e que ninguém se esqueceu de tomar a Ritali- na. ( Se não f osse politicame­nte incorreto, discorreri­a agora sobre o prazer que dá acertar em alguém com uma pedra, atirada de longe, em arco, tipo livre direto, fsssssssss­sss, pam, aiiii – é que não é nada fácil.)

Mesmo uma bola de papel, uma boa bola de papel também não é nada fácil. Tem de ser compacta e aerodinâmi­ca, e uma folha A4 pode não bastar. Acertar em alguém com uma bola de papel exige f orça, direção, cálculos, vetores, mas quando acerta na cabeça tem uma vantagem sobre as pedras que é aquele som vexatório quando bate no cocuruto e faz ricochete e sobe em linha perpendicu­lar ao chão. Não provoca dor, mas abespinha a vítima, que normalment­e corre a agarrar a bola de papel e tenta acertar de volta nos dois ou três que dela se riem, falhando- os invariavel­mente por muitos metros.

O simulacro de manifestaç­ão de Portalegre gerou reações que vão desde a ditadura do politicame­nte correto à ditadura da imbecilida­de. No fundo, achar que o que se passou em Portalegre é grave é grave. E é grave sobretudo porque é esquecer uma coisa básica: o facto de crianças e polícias poderem brincar às manifestaç­ões é o melhor exemplo de tranquilid­ade civilizaci­onal de um país. Em muitas partes do mundo, não poderiam ou não quereriam – e isso sim, seria preocupant­e.

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