Diário de Notícias

Como as cerejas

- ANDRÉ MACEDO

Apolítica tem um lado de ficção que convém não menospreza­r. Daí que para a Grécia e para a Europa é melhor o frágil acordo que está a ser negociado do que não haver acordo nenhum. Mas quem ler a proposta assinada por Alexis Tsipras compreende que o que está lá escrito traduz no imediato a vitória em quase toda a linha dos credores, com uma ou outra minúscula concessão, e que este recuo de modo algum expressa a vontade concretiza­da no referendo – pelo contrário, atropela- a, tritura- a, desvaloriz­a- a pelas mãos dos mesmos que fizeram que mais de três milhões de pessoas acreditass­em que o contrário era possível.

Foi de facto um conto de crianças. Ou então... ou então é pior: foi um falso conto de crianças. A sangria financeira acelerada pelo vai ou racha do Syriza, amadoramen­te acomodada pelos credores, tinha um objetivo maior para Alexis Tsipras. Os bancos privados gregos estão todos abaixo da linha de água. Terão de ser ressuscita­dos. Talvez tenham de ser fundidos, nacionaliz­ados, iguais não ficarão de certeza. Muita riqueza mudará de mãos. É possível que até os depositant­es mais ricos percam dinheiro na operação de salvamento que será forçoso lançar nos próximos dias. Ora aqui está uma grande oportunida­de para baralhar o statu quo do sistema financeiro grego e fazê- lo a partir do governo, escolhendo os vencedores um a um, como as cerejas, e afastando sumariamen­te os perdedores.

Já aqui se escreveu que há um PREC em curso em Atenas. Apesar das constantes manifestaç­ões de vontade feitas pelo Syriza de que pretende continuar na moeda única, chegados a este ponto a verdade parece estar mais próxima da margem oposta. Tsipras só precisa dos culpados certos, a troika e os sócios europeus, para ir concretiza­ndo a separação ou então para ir mudando o país a seu gosto no meio do pavor instalado. Os erros insistente­s da troika estão na origem desta oportunida­de ideológica de sonho para um partido de extrema- esquerda.

O documento apresentad­o na quinta- feira talvez ajude a Grécia a ganhar tempo. Pode ser que implique a prazo uma reestrutur­ação da dívida. Mas pelo caminho, enquanto se procuram compromiss­os de última hora, o Syriza está a moldar as circunstân­cias internas do país à sua imagem e semelhança. Com a contagiosa bandeira do bem e da justiça popular nas mãos – a ajuda aos mais desfavorec­idos, a penalizaçã­o dos credores usurários, o perdão da dívida considerad­a ilegítima –, a revolução faz o seu extraordin­ário e disfarçado caminho.

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