Como as cerejas
Apolítica tem um lado de ficção que convém não menosprezar. Daí que para a Grécia e para a Europa é melhor o frágil acordo que está a ser negociado do que não haver acordo nenhum. Mas quem ler a proposta assinada por Alexis Tsipras compreende que o que está lá escrito traduz no imediato a vitória em quase toda a linha dos credores, com uma ou outra minúscula concessão, e que este recuo de modo algum expressa a vontade concretizada no referendo – pelo contrário, atropela- a, tritura- a, desvaloriza- a pelas mãos dos mesmos que fizeram que mais de três milhões de pessoas acreditassem que o contrário era possível.
Foi de facto um conto de crianças. Ou então... ou então é pior: foi um falso conto de crianças. A sangria financeira acelerada pelo vai ou racha do Syriza, amadoramente acomodada pelos credores, tinha um objetivo maior para Alexis Tsipras. Os bancos privados gregos estão todos abaixo da linha de água. Terão de ser ressuscitados. Talvez tenham de ser fundidos, nacionalizados, iguais não ficarão de certeza. Muita riqueza mudará de mãos. É possível que até os depositantes mais ricos percam dinheiro na operação de salvamento que será forçoso lançar nos próximos dias. Ora aqui está uma grande oportunidade para baralhar o statu quo do sistema financeiro grego e fazê- lo a partir do governo, escolhendo os vencedores um a um, como as cerejas, e afastando sumariamente os perdedores.
Já aqui se escreveu que há um PREC em curso em Atenas. Apesar das constantes manifestações de vontade feitas pelo Syriza de que pretende continuar na moeda única, chegados a este ponto a verdade parece estar mais próxima da margem oposta. Tsipras só precisa dos culpados certos, a troika e os sócios europeus, para ir concretizando a separação ou então para ir mudando o país a seu gosto no meio do pavor instalado. Os erros insistentes da troika estão na origem desta oportunidade ideológica de sonho para um partido de extrema- esquerda.
O documento apresentado na quinta- feira talvez ajude a Grécia a ganhar tempo. Pode ser que implique a prazo uma reestruturação da dívida. Mas pelo caminho, enquanto se procuram compromissos de última hora, o Syriza está a moldar as circunstâncias internas do país à sua imagem e semelhança. Com a contagiosa bandeira do bem e da justiça popular nas mãos – a ajuda aos mais desfavorecidos, a penalização dos credores usurários, o perdão da dívida considerada ilegítima –, a revolução faz o seu extraordinário e disfarçado caminho.