Diário de Notícias

“Deus morreu”, e agora?

- ANSELMO BORGES Padre e professor de Filosofia Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

1 Volto muitas vezes a esse sublime e abissal texto, pavoroso, um dos grandes da grande literatura alemã, que Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, escreveu em 1796: “Rede des toten Christus vom Weltgebäud­e herab, dass kein Gott sei” (“Discurso do Cristo morto, a partir do cume do mundo, sobre a não existência de Deus”).

Nele, o célebre escritor descreve um sonho. Pela meia- noite e em pleno cemitério, numa visão apavorante, o olhar estende- se até aos confins da noite cósmica esvaziada, os túmulos estão abertos, e, num universo que se abala, as sombras voláteis dos mortos estremecem, aguardando, aparenteme­nte, a ressurreiç­ão. É então que, a partir do alto, surge Cristo, uma figura eminenteme­nte nobre e arrasada por uma dor sem nome. E, com um terrível pressentim­ento, “os mortos todos gritam- lhe: ‘ Cristo, não há Deus?’ Ele respondeu: ‘ Não, não há Deus.’ Então, a sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjunt­aram- se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: ‘ Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: ‘ Pai, onde estás?’ Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém governa.” Quando, no espaço incomensur­ável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificad­o com uma órbita ocular vazia e sem fundo, “e a eternidade jazia sobre o caos e roía- o e ruminava- se”. O coração rebentou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério se lançaram para Cristo, perguntand­o: “Jesus, não temos Pai?” E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: “Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai.” “Nada imóvel, petrificad­o e mudo! Necessidad­e fria e eterna! Acaso louco e absurdo! Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. Ó Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há- de poder ser também o seu próprio exterminad­or?”

Para Jean Paul, a morte de Deus não era ainda um destino espiritual inevitável. Apenas a tentação de uma possibilid­ade ameaçadora. E ele queria estar prevenido: que, quando a tentação o visitasse, soubesse de antemão o abismo sem fim, pavoroso, a que a morte de Deus conduz. Quando acordou do pesadelo ateu, a sua alma “chorava de alegria, por poder de novo adorar a Deus –e a alegria e o choro e a fé nele era a oração”.

2 Um século depois ( 1882), o louco de Nietzsche proclamou a morte de Deus: “Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!” “Nunca existiu acto mais grandioso.” Ao mesmo tempo, Nietzsche tem consciênci­a aguda do que se segue: “Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar- nos para todo o sempre? E a precipitar- nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?”

3 O filósofo Gilles Lipovetsky escreveu, em A Era do Vazio: “Deus morreu, as grandes finalidade­s extinguem- se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo.” Mas Leszek Kolakowski, o filósofo agnóstico, disse que o nosso “é um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura”, de tal modo que, desde a proclamaçã­o da morte de Deus por Nietzsche, “praticamen­te nunca mais vimos ateus serenos”: “A ausência de Deus tornou- se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que tenha sido o esforço para esquecê- lo, recorrendo a toda a espécie de narcótico.” De qualquer forma, agora, no seu livro A Sociedade da Decepção, Lipovetsky, reconhecen­do “a reafirmaçã­o do religioso”, vem dizer que, “privados de sistemas de sentido englobante, numerosos indivíduos encontram uma tábua de salvação no reinvestim­ento de antigas e novas espiritual­idades capaz de oferecer a unidade, um sentido, referência­s, uma integração comunitári­a: é o que o homem necessita para combater a angústia do caos, a incerteza e o vazio”.

4 Há quem acuse a fé de mera ilusão. Mas eu creio que ela é sobretudo um combate, como reza esta espécie de testamento de um judeu que morreu em 1943 no gueto de Varsóvia: “Creio no Deus de Israel, embora ele tenha feito todo o possível para que não acredite... Deus ocultou o seu rosto ao mundo. As folhas em que escrevo estas linhas vou encerrá- las nesta garrafa vazia e escondê- la aqui entre os tijolos da parede, debaixo da janela. Se alguém as encontrar um dia e as ler, talvez entenda o sentimento de um judeu – um entre milhões – que morreu como abandonado de Deus, esse Deus no qual acredita tão firmemente.”

Há quem acuse a fé de mera ilusão. Mas eu creio que ela é sobretudo um combate”

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