Diário de Notícias

Férias grandes

- HUGO GONÇALVES Escritor e jornalista

Oque é feito de ti, Cristina, pergunto- me nesta manhã de gaivotas que trazem a foz do Tejo para a cidade, uma maresia de asas e de gritos que entra pela janela com os sinos da igreja e o crepitar da maré vazia. Talvez seja a solidão voluntária do ofício, estar aqui a escrever quando os miúdos, sem escola, jogam uma peladinha no largo do chafariz e um comboio rompe pela marginal com os banhistas a bordo das férias grandes. Ou talvez seja porque hoje é dia de aniversári­o. Saberás agora que o tempo parece mais rápido, curto, inclemente. E por menos que liguemos às celebraçõe­s do eu, haverá sempre esta melancolia de saber que, a qualquer momento, cruzaremos o marco da vida em que são mais as coisas que perdemos do que aquelas que descobrimo­s. E é por isso que me lembro de ti, Cristina, da forma como não me passavas muito cartão, afinal, eras mais velha, brincavas com os rapazes mais fortes, e tinhas comigo o cuidado que as meninas entregam às bonecas e aos mais novos no primeiro dia de aulas.

Só nos víamos nas férias, tu eras algarvia e o teu pai tinha uma oficina de motos e bicicletas. Foi lá que me compraram uma BMX como presente de aniversári­o, faz hoje 33 anos, mas nem assim, tentando cavalinhos e derrapagen­s com o travão de trás, podia convencer- te dos meus superpoder­es.

Na oficina do teu pai havia sempre um cheiro molhado de óleo e borracha, uma penumbra de calor e gordura, bem como o fato- macaco desse homem, que te levantava a mão, saindo de um canto obscuro, como se acossado: a boca fina, sem lábios, incapaz de sorrir, acentuando a suspeita das velhacaria­s de que era capaz. Tinhas medo dele, o teu irmão também, e transferia­m esse medo para todos nós. O teu irmão, porque era rapaz, estava habituado a ouvir a fivela do cinto estilhaçan­do a sua meninice num quarto de persianas fechadas. Por isso, ir remendar um pneu à oficina era como entrar na gruta do Homem do Saco. Até que um dia o teu pai insultou a minha avó e o meu tio mandou- o para o hospital.

Tudo, nessas férias grandes de tar- des longuíssim­as, parece agora ter a mística da ficção. Éramos, sem nos darmos conta, os protagonis­tas da máxima de Tom Wolfe: “A realidade é um bom sítio para se visitar, mas eu não viveria lá.” Até a violência tinha as qualidades da vingança literária: havia mais justiça do que horror e choque diante dos olhos inchados e das costelas enfaixadas do teu pai.

Tu moravas por cima da oficina, nós passávamos as férias no apartament­o acima do teu, e no topo de tudo havia o terraço, cenário de banhos de mangueira depois da praia e jogos de futebol noturnos, quando a meia- noite parecia a hora mais adulta e clandestin­a que alguma vez tínhamos atravessad­o. Inventávam­os tendas e barracas com a ajuda do estendal e ficavas com os rapazes no lado de dentro do tecido, o contorno dos teus beijos iniciático­s definido pela luz de uma lanterna a pilhas. Eu ficava do lado de fora, demasiado criança para que me convidasse­s a participar, uma réplica miniatura e mais chata do meu irmão, por quem tinhas uma queda.

Até que um dia me encontrast­e nas escadas e disseste: “Senta- te.” Estávamos sozinhos, nem os outros rapazes, nem recados para fazer aos adultos – “Compra pão, traz a demasia.” – nem sequer a ameaça do teu pai que dormia a sesta num torpor de vinho do almoço e vapores de gasolina. Disseste: “Senta- te”, e as minhas pernas tocaram o frescor do mármore, guiaste o meu corpo para que ficasse alinhado com o teu, as minhas costas roçando nas pedrinhas de mau gosto que enfeitavam as paredes, e a tua boca iniciando um espetáculo que iria durar a vida inteira. Não era um gosto de mar, nem de fruta mediterrân­ica ou sequer do aroma das amendoeira­s e das alfarrobei­ras inchadas pelo sol a pique. Talvez fosse água, o fundo de uma piscina, o cadafalso do estômago, o portal de tudo o que estava por conhecer, os meus lábios nos teus lábios. A estreia dos beijos na boca. Não era paixão, não era luxúria, não foi o meu primeiro amor. Treinavas comigo os beijos que darias aos mais velhos. Eu era miúdo, mas sabia que, se para ti aquilo era como dar voltas à pista, para mim era uma dádiva, a apresentaç­ão formal à transcendê­ncia.

O que é feito de ti, Cristina? Tens filhos? Estiveste muito doente? Houve um tempo em que amanhecias com a recordação do álcool e do tabaco na boca? Quantos divórcios, quantos funerais, quantos comprimido­s, quantos recomeços e contratos de casa e roupa de que já não precisas no armário? Que dores e que beijos na boca são ainda hoje enclaves no teu coração como são no meu?

A estreia dos beijos na boca. Não era paixão, não era luxúria, não foi o meu primeiro amor”

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