Um ano de ouro para os direitos da comunidade homossexual
Direitos. EUA legalizam matrimónios, a Irlanda votou sim em referendo e Moçambique despenalizou as relações entre pessoas do mesmo sexo
Seguindo a denúncia de um amante ciumento, a polícia arrombou a porta do apartamento de John Lawrence e apanhou- o a ter relações sexuais com Tyron Garner. Apesar de consensual, sexo entre dois homens era proibido no Texas e os dois homens foram presos por violação da lei de Conduta Homossexual, dando origem a um dos casos mais mediáticos da comunidade gay nos Estados Unidos. Mas isto não foi em décadas longínquas; isto foi em 1998, quando ainda se cumpria pena de prisão por relações homossexuais.
O caso Lawrence vs. Texas arrastou- se durante anos e só foi concluído em 2003, com uma importantíssima decisão do Supremo, que declarou a legislação inconstitucional. O mesmo Tribunal que determinou agora o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo nos 50 estados, levando a América para o patamar onde já estão duas dezenas de países – incluindo Portugal, desde 2010.
A Holanda esteve na linha da frente, em 2001, como primeiro país a banir as restrições ao casamento homossexual. Seguiram- se Bélgica, Espanha, Canadá, África do Sul, Noruega, Suécia, Islândia, Argentina, Dinamarca, Brasil ( apesar de ser um processo complicado), França, Uruguai, Nova Zelândia, Reino Unido, Luxemburgo e Finlândia.
Já em maio deste ano, os irlandeses votaram “sim” no referendo pela liberdade de casamento entre pessoas do mesmo sexo. E na semana passada, Moçambique despenalizou a homossexuali - dade, embora ainda haja 34 países afr i canos que a enquadram como crime.
É um ano histórico na luta de gays e lésbicas pelos mesmo di - reitos que assistem aos heteros - sexuais, mas a comunidade gay nos Estados Unidos apressa- se a fazer o aviso: a guerra ainda não terminou. Ser gay e católico Alan Miranda tem 22 anos e concluiu recentemente a sua licenciatura em Engenharia Química no MIT. Está à procura de emprego e entretanto trabalha como voluntário na associação The Welcoming Committee, que organiza festas, eventos desportivos e encontros comunitários para gays e lésbicas em 12 cidades dos Estados Unidos. É gay e católico, uma combinação explosiva para muitos num país onde o conservadorismo extremo convive com o liberalismo e o capitalismo em estado puro.
“Sair do armário no liceu foi difícil. Há muito a noção sobre como um homem deve ser, como deve agir, as mulheres que deve cortejar”, explica Alan ao DN, na festa de celebração da decisão do Supremo num bar em Los Angeles. “Ouvi muitas coisas desse estilo, até do meu próprio pai. ‘ É assim que te deves comportar, se não o fazes, será que és mesmo um homem?!’”, conta.
“Muitos homossexuais entram em depressão e receiam assumir- se. Com o casamento legalizado, é algo com que podem sonhar, um objetivo de futuro. Estes miúdos que estão a crescer com medo da discriminação poderão vê- lo como um passo em direção à aceitação.”
Mas esta aceitação vai demorar tempo, acredita o jovem engenheiro. “Essa é uma batalha que ainda está por vencer. Estamos a celebrar isto agora, mas não acabou; há muito por fazer, há que educar as pessoas sobre o que se passa.” Acima de tudo, ele quer poder discutir com outras pessoas sem ser “acusado” de ser gay, isto é: sem que ser gay seja algo negativo atirado contra si. Para Marlon Banks, a situação é mais extrema, porque além de ser gay é de raça negra e a discriminação vem em dose dupla. Aos 30 anos, mudou- se do Texas para a Califórnia cheio de sonhos. É designer gráfico e tem estado a viver em casas alugadas através do site airbnb. Conta que, entre os seus amigos, a decisão do Supremo foi recebida com alegria mas alguma amargura. Porque se sentem um subgrupo até dentro da comunidade gay.
“Como afro- americano, sinto que existe uma camada extra de discriminação”, diz ao DN. Fala de forma calma e articulada sobre os problemas que enfrenta. Como é que se ultrapassam esses obstáculos crescendo num estado conservador como o Texas? “É preciso ter uma carapaça forte, e procurar apoio nas organizações que trabalham para que a comunidade negra ganhe mais visibilidade dentro da comunidade gay.”
Vindo da costa leste, de Nova Iorque, Aramael Pena- Alcantara é um contraste total: fala depressa, as mãos no ar desenhando círculos, cocktail na mão para ir bebe- ricando. Tem apenas 21 anos e estudou na prestigiada Columbia University, uma das oito que formam a Ivy League. Saiu e foi prontamente contratado pela Disney. “Acordei com uma notificação no telemóvel sobre a decisão do Tribunal e não conseguia parar de saltar”, recorda.
“Foi uma experiência de alegr i a absoluta.” Conta que o namorado ficaria furioso se ele dissesse que quer casar, por i sso abstém- se de responder à pergunta sobre planos futuros. Mas é assertivo quando ao poder desta decisão: “Chegámos tão longe. Não quer dizer que estejamos onde precisamos de estar, mas é um grande marco e por momentos senti- me invencível.”
Tal como Alan, diz que este é o car i mbo de orgulho que l hes faltava, poderem andar de cabeça levantada, sem terem de aceitar uma versão inferior de casamento. É claro que a decisão não vem sem anticorpos: no Texas, o procurador- geral Ken Paxton já anunciou que os funcionários que se recusem a emitir licenças de casamento gay poderão fazê- lo, protegidos pelo direito de recusar serviço devido a crenças religiosas. Anteveem- se processos e batalhas legais não só ali, mas noutros dos 14 estados onde o casamento homossexual era proibido até agora.
Para Aaron Deutsch, um nova- iorquino divorciado que já passou dos 50, o veredicto é simples: “Todos os casamentos devem ser religiosos, logo apenas entre um homem e uma mulher. A religião é que i nventou o casamento”, afirma.
“O problema é que fabricaram isso do casamento civil entre heterossexuais. Asneira. Chamavam- lhes uniões civis, alargavam aos homossexuais e toda a gente ficava contente.”