Diário de Notícias

“ERA UM LUGAR QUE NÃO PERTENCIA A ESTE MUNDO. O CHÃO TINHA DESAPARECI­DO”

Srebrenica I. Foi há 20 anos que o mundo assistiu ao genocídio na Bósnia. A cidade de Srebrenica, no Nordeste do país, depois de três anos de cerco, caiu a 11 de julho e, em poucos dias, mais de oito mil muçulmanos foram assassinad­os. Para concretiza­r o s

- JOSÉ FIALHO GOUVEIA em Srebrenica

Mesmo fechando os olhos, a imagem da etiqueta não se ia embora. Era apenas uma etiqueta de umas calças, mas as palavras não lhe saíam da cabeça: Made in Portugal.

Hasan Nuhanovic recebeu um telefonema numa manhã de junho de 2010. Do outro lado da linha, disseram- lhe que, no laboratóri­o, acreditava­m ter identifica­do o corpo. Mas as análises ao ADN não eram conclusiva­s e pediram- lhe que se deslocasse a Tuzla, uma cidade no Nordeste da Bósnia. “Era preciso fazer um reconhecim­ento físico daquilo que fora encontrado com os restos mortais”, conta Hasan, à mesa da cafetaria de um hotel em Sarajevo, no passado mês de maio. “Trouxeram- me um saco de plástico. Assim que vi os ténis tive a certeza de que eram os dele. Também analisei alguns bocados de roupa. Foi surreal ver os restos da exumação e, ali no meio, aquela etiqueta, a única coisa que restava das calças de ganga”. Nessa noite, já em casa, Hasan sentou- se ao computador e começou a escrever: “Hoje identifiqu­ei o corpo do meu irmão. (...) Durante todo o dia tive à frente dos meus olhos aquelas palavras: ‘ Made in Portugal’. Julgo que vou vê- las a vida inteira.” Tinham passado 15 anos desde que Muhamed fora abatido a tiro, numa execução coletiva.

Foi há 20 anos que o mundo assistiu ao pior massacre na Europa depois da II Guerra Mundial e a um novo genocídio em solo europeu. Depois de três anos cercada e bombardead­a, Srebrenica caiu a 11 de julho de 1995 nas mãos do exército sérvio- bósnio. Nos dias seguintes, mais de 8 mil muçulmanos bósnios ( bosniaks) foram torturados e mortos. O objetivo era a limpeza étnica do território. Os corpos das vítimas foram enterrados em valas comuns e mais tarde movidos para outros lugares. Tudo numa tentativa de encobrir o crime. Ainda hoje, muitas mulheres esperam que os filhos e os maridos sejam encontrado­s e identifica­dos. No funeral coletivo, que todos os anos tem lugar a 11 de julho, a maior parte dos caixões leva dentro apenas alguns ossos.

Kada Hotic nasceu na cidade de Zvornik, na Bósnia, em maio de 1945, com o pai já morto, caído numa batalha da II Guerra Mundial. Conta que é parecida com ele, pois conheceu- lhe o rosto através de duas fotografia­s. Vai desfiando a sua história, enquanto fuma cigarros atrás de cigarros. Pela vida fora a morte foi- lhe levando gente, mas nunca com a brutalidad­e com que o fez em 1995. “Às vezes pego nos restos das balas que encontrei no local onde o meu filho foi abatido. Passo- as, uma a uma, entre os dedos e fico a pensar se terá sido alguma daquelas que o matou.” De Samir apenas se encontrara­m três

 ??  ?? Mães de Srebrenica choram sobre os caixões dos familares que vão a enterrar. Todos os anos, a 11 de julho, realiza- se um funeral coletivo com os corpos que foram identifica­dos. No genocídio morreram cerca de oito mil homens e rapazes muçulmanos-...
Mães de Srebrenica choram sobre os caixões dos familares que vão a enterrar. Todos os anos, a 11 de julho, realiza- se um funeral coletivo com os corpos que foram identifica­dos. No genocídio morreram cerca de oito mil homens e rapazes muçulmanos-...

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