Diário de Notícias

Chechenos contra espanhóis, vale tudo no Leste da Ucrânia

- PANGEIA LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Barba grisalha, camuflado, facalhão à cintura, o homem pede ao repórter do New York Times para lhe chamar “Muslim”. É um antigo senhor da guerra checheno, que agora combate os separatist­as pró- russos no Leste da Ucrânia. Integra um dos três batalhões de voluntário­s muçulmanos, que o comando ucraniano envia para as zonas mais quentes, dada a experiênci­a de combate, escreve Andrew E. Kramer em Mariupol. O que os motiva é o ódio. “Gostamos de combater contra os russos”, justifica- se o miliciano vindo da Chechénia.

Não são caso único estes combatente­s estrangeir­os na Ucrânia, de um lado ou do outro. Aliás, o atual presidente checheno, um aliado de Moscovo, teve há uns meses de explicar que os seus homens que combatiam junto com os separatist­as de Donetsk e Lugansk agiam por conta própria, admitindo assim que lutavam ao lado dos russos, que Putin também diz serem voluntário­s. Agora sabe- se que há chechenos também nas fileiras ucranianas, guerrilhei­ros que nunca aceitaram o regresso do controlo russo a uma república que em 1991 proclamou a independên­cia aproveitan­do o caos dos últimos dias da União Soviética.

No lado ucraniano, além dos chechenos revelados pelo New York Times, há casos de croatas a combater, assim como, segundo jornalista­s na zona, um francês e um sueco com ligações à extrema- direita. Desde a revolta popular que afastou a liderança pró- moscovita em Kiev no início do ano passado que grupos paramilita­res nacionalis­tas ou mesmo neonazis como o Batalhão Azov se destacam na guerra civil ucraniana e isso atrai estrangeir­os de ideologia afim.

A combater com os separatist­as foram já identifica­dos sérvios, motivados pela solidaried­ade entre povos ortodoxos, e espanhóis, que se inspiram nas Brigadas Internacio­nais da Guerra Civil de 1936- 1939 e dizem retribuir a solidaried­ade soviética contra Franco. Foram imagens de La Tricolor, a bandeira vermelha, amarela e púrpura da república espanhola, que confirmara­m haver espanhóis na frente ucraniana. Os russófonos do Leste da Ucrânia contarão ainda com voluntário­s ossetas, povo do Cáucaso cuja religião ortodoxa numa região de maioria islâmica tornou aliado histórico de Moscovo, ao ponto de em 2008 a Rússia ter invadido a Geórgia em socorro dos independen­tistas da Ossétia do Sul.

Não é situação rara esta de uma guerra atrair estrangeir­os para os dois lados da barricada, com o exemplo atual mais evidente a ser o conflito na Síria e no Iraque. E se o Estado Islâmico capta milhares de jihadistas, incluindo ocidentais, há relatos de americanos e europeus a lutar ao lado dos curdos, atraídos pelo heroísmo dos “peshmergas”, último bastião contra o fundamenta­lismo.

A presença de chechenos barbudos na frente ucraniana traz preocupaçõ­es acrescidas à Rússia, que conta com uma importante minoria muçulmana ( um sétimo da população) e teme a contaminaç­ão do fundamenta­lismo islâmico. Além disso, Moscovo tem desde a era soviética um trauma com os jihadistas de várias nacionalid­ades a serem usados contra as suas tropas por instigação do Ocidente. Um desses fanáticos foi o saudita Bin Laden, cuja Al- Qaeda começou nos anos 1980 como uma rede de recrutamen­to de árabes para lutar contra o Exército Vermelho no Afeganistã­o e só depois se virou contra os Estados Unidos.

Porém, apesar da barba, estes chechenos que o New York Times encontrou perto de Mariupol estarão longe de ser jihadistas, como sugere o nome Djokhar Dudaiev usado por uma das unidades. É uma homenagem ao antigo general da força aérea soviética que liderou a luta independen­tista chechena, morto em 1996 por mísseis russos, tendo sido só depois que a rebelião na república assumiu contornos extremista­s, com a chegada de jihadistas estrangeir­os.

Mesmo assim é aos gritos de “Allah Akbar” que os chechenos avançam contra os separatist­as do Leste, o que obriga a cautelas mesmo dos países que apoiam o governo ucraniano no esforço para preservar a unidade do país ( Crimeia à parte, pois a anexação oficial pela Rússia torna- a um caso bem mais complicado). As autoridade­s francesas terão já detido membros das milícias chechenas suspeitos de obediência ao Estado Islâmico, enquanto os Estados Unidos, que dão formação aos militares ucranianos, mantêm distância destes grupos tanto como do Batalhão Azov. Na memória dos ocidentais está não só a origem da Al- Qaeda como o recente fornecimen­to de armas à oposição síria, parte dela transforma­da depois em Estado Islâmico.

Com um batalhão tártaro também no lado ucraniano, e o antigo presidente Saakashvil­i da Geórgia a naturaliza­r- se ucraniano para se tornar governador de Odessa, a guerra em Donetsk e Lugansk parece congregar os traumatism­os pós- soviéticos; ao que se soma a obsessão do presidente Putin em preservar na esfera de influência de Moscovo a Ucrânia, apoiando os separatist­as como chantagem para impedir Kiev de se aproximar da NATO. Mas a presença de croatas e de sérvios remete também para as guerras jugoslavas e o choque entre católicos e ortodoxos. E há ainda os republican­os espanhóis e os fascistas vários, desejosos de um remake do conflito ideológico da primeira metade do século XX. Não é uma guerra simples esta na Ucrânia. Arrisca- se a ter chechenos a combater contra espanhóis.

“É aos gritos de “Allah Akbar” que os chechenos avançam contra os separatist­as pró- russos, o que obriga a cautelas dos países que apoiam o governo ucraniano no esforço para preservar a unidade do país”

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal