Diário de Notícias

Harper Lee voltou: Scout regressa a Maycomb de comboio

O dia de ontem contou com um evento literário. Foi revelado o primeiro capítulo da sequela de Mataram a Cotovia, romance da esquiva e sempre afastada da ribalta Harper Lee. Chama- se Go Set a Watchman. Escrito antes da sua prequela, esteve perdido durante

- Mariana Pereira POR

Sequela de Mataram a Cotovia prestes a chegar às livrarias. Uma dupla festa: o regresso de Lee e o seu 55. º aniversári­o.

Chega como uma carta de alguém que nos é querido e cujo paradeiro há muito desconhece­mos. O primeiro capítulo de Go Set a Watchman ( Vai e Põe Uma Sentinela, em tradução livre), segundo livro de Harper Lee e sequela de To Kill a Mockingbir­d ( Mataram a Cotovia, de 1960), surgia ont e m nojornal britânico The Guardian e no norte- americano The Wall Street Journal. Muito levemente se antecipava assim a publicação da obra, agendada para a próxima terça- feira.

Scout, isto é, Jean Louise Finch, nome da heroína maria- rapaz de Mataram a Cotovia, cresceu. Nesse até aqui único romance da escritora norte- americana – que lhe valeu o Prémio Pulitzer em 1961 – conhecemo- la com 6 anos. E é com ela que regressamo­s a Maycomb, essa cidade que Harper Lee inventou a partir da Montgomery em que cresceu, no estado do Alabama.

Scout está dentro do comboio e olha pela janela “com uma satisfação quase física”. Está a voltar a casa de Nova Iorque, onde vive. Passaram- se vinte anos. Ela tem 26 e esta é a América dos anos 1950. Jem, o seu irmão? Está morto. Atticus, o pai deles, esse que, ao ensinar Scout, nos ensinou que “é pecado matar uma cotovia” – porque tudo o que a cotovia faz é cantar, nunca fez mal a ninguém –, tem 72 anos e está doente. Tem artrite reumatoide e, portanto, dor permanente ( é Atticus, nunca se queixa). Ele que ia a pé para todo o lado e se sentava sempre sozinho na missa. Ele que, sozinho e contra ( quase) todos, defendeu Tom Robinson, o negro que, naquela América da segregação racial, foi injustamen­te acusado de ter violado uma rapariga branca e por isso mesmo condenado à morte.

Antes de se continuar por esse capítulo em que o comboio avança na direção de Maycomb, é preciso relembrar – justamente, hoje, no dia do seu 55. º aniversári­o –, que Mataram a Cotovia vendeu cerca de 40 milhões de exemplares por todo o mundo e, em média, conti- nua a vender um milhão por ano. Talvez seja por isso que o livro figurava ontem em primeiro lugar no top da Amazon norte- americana e inglesa, talvez seja por isso que os jornais prepararam todo um aparato digital para acompanhar este capítulo e a voz da atriz Reese Witherspoo­n está lá para o narrar e as livrarias anglófonas têm programas para terça- feira.

E, enquanto não se regressa à obra, será preciso dizer que Go Set a Watchman é cronologic­amente anterior a Mataram a Cotovia. Que é um livro escrito nos anos 1950 por uma jovem Harper Lee a quem o editor recomendou que se concentras­se sobretudo no ponto de vista da mocidade através da maria- rapaz Scout, de 6 anos. Que é um livro que esteve durante décadas desapareci­do e foi encontrado no verão de 2014 pela advogada de Lee, Tonja Carter, anexado ao dactiloscr­ito original de Mataram a Cotovia. As notícias que davam conta da existência da obra apenas surgiram em fevereiro último.

Todas as luzes voltaram então a incidir sobre Harper Lee, hoje com 89 anos, figura tão mítica quanto esquiva a essas mesmas luzes. Ela que sofreu um acidente vascular cerebral em 2007 que a deixou praticamen­te cega, a ouvir muito mal e numa cadeira de rodas. Hoje, vive num lar em Monroevill­e, Alabama. Quando o seu agente literário, Andrew Nurnberg, lhe perguntou se queria reler a obra, a escritora – conta o The New York Times – terá respondido: “Oh, não, eu lembro- me muito bem dela. Mas se acha que as pessoas vão gostar, vamos publicá- la.” Quanto aos leitores portuguese­s, podem esperá- la pa - ra “o último trimestre do ano”, edi- tada pela Editorial Presença, fez esta saber em abril.

Abre- se Go Set a Watchman e encontra- se Harper Lee: o tom é o dela, sotaque sulista e tudo, assim como o humor ( veja- se a descrição dos maquinista­s). O título poderá vir da passagem bíblica com as palavras do profeta Isaías ( 21: 6): “Porque o Senhor me disse: Vai e põe uma sentinela que anunciará tudo o que vir.” É difícil não pensar em Atticus como essa sentinela, malgrado a possibilid­ade de uma falsa partida. No comunicado da editora americana, a Harper Collins, lê- se que, nesta sequela de Mataram a Cotovia, Scout é “forçada a lutar com questões pessoais e políticas ao tentar compreende­r a posição do seu pai perante a sociedade”. Outrora, e como se lê no primeiro romance de Lee, parecia que “só as crianças choravam” por aquilo contra o qual Atticus se debatia – a falta de compaixão, a injustiça, a segregação racial. Não sabemos que Scout é esta a que encontramo­s em Go Set a Watchman.

Mas quem recorda a maria- rapaz tranquiliz­ar- se- á quando souber como está vestida e como antecipa “a fungadela de desaprovaç­ão da tia”. Tal qual a que recebia a Scout de 6 anos dentro das suas jardineira­s. Essa “criatura” que se tornou uma “cópia razoável de um ser humano”. A outra era uma criança, esta Scout já foi beijada. E lá está ele, um tal de Henry Clinton que cresceu com ela – protegido de Atticus – e que foi à guerra. Espera na estação de comboios, quer casar- se com ela, que o rejeita. Sabemos que está “quase apaixonada por ele” e que sabe que tal coisa não existe. Porque “ou se está ou não se está”. Então, como há vinte anos, estamos na sua cabeça outra vez.

E o que será feito do misterioso Boo Radley? Aquela figura sempre fechada em casa que Scout e Jem diabolizav­am e um dia, de bondade sempre discreta, os salvou? Aquele de quem um dia Harper Lee – sempre comparada a Scout – terá dito: “Na verdade, eu sou o Boo.”

 ??  ?? Harper Lee, de 89 anos, nasceu no Alabama, onde hoje vive. O seu primeiro romance, Mataram a Cotovia ( 1960), valeu- lhe o Prémio Pulitzer
Harper Lee, de 89 anos, nasceu no Alabama, onde hoje vive. O seu primeiro romance, Mataram a Cotovia ( 1960), valeu- lhe o Prémio Pulitzer
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Harper Lee William Heinemann 304 páginas PVP: 25,50 euros
Go Set a Watchman Harper Lee William Heinemann 304 páginas PVP: 25,50 euros

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