Diário de Notícias

Muse: a vitória do rock ao primeiro dia do NOS Alive

Doze comunidade­s lisboetas contribuír­am para a performanc­e comestível do coletivo espanhol Ali& Cia que encerra a temporada do Maria Matos. É uma capital de se comer e chorar por mais que se oferece em banquete aberto

- Maria João Guardão POR

No festival das tatuagens douradas e chapéus de cowboy brancos há um nome que se destaca logo à primeira: Muse.

OCastelo de São Jorge ergue, grão a grão, as suas muralhas de cuscuz sobre a cidade doce e salgada que tem aos pés. No Campo das Cebolas há uma palmeira desenhada com uvas e coentros, na Baixa alinham- se quarteirõe­s construído­s com crepes vietnamita­s, a igreja de Campo de Ourique é uma delícia da pastelaria romena, em Campolide os prédios recortados em pepino ladeiam pequenas vivendas feitas de pão e chocolate. A comunidade chinesa trabalhou delicadame­nte vegetais e frutas para lhes dar a forma dos patos e galos e arbustos que povoam o jardim do Campo dos Mártires da Pátria, a comunidade hindu inventou um Tejo de gelatina com sabor a água de rosas e a flor de pandanus ( kewda), onde nadam cajus como se fossem peixes.

“É uma Lisboa reconhecív­el mas reelaborad­a para poder ter forma de comida”, explica Barbara Ortiz, a arquiteta que a meio dos anos 90 se juntou a Alicia Ríos, a artista da comida que fundou o coletivo espanhol Ali& Cia, responsáve­l por performanc­es em que “a realidade é reinterpre­tada através da comida e devorada coletivame­nte”.

Comer Lisboa começou em Melbourne, nos antípodas, e chegou a Madrid e a Londres, por exemplo, antes de estender cá a toalha, desejo antigo do diretor artístico do Maria Matos, Mark Deputter, que fecha tradiciona­lmente as suas temporadas à volta de uma mesa comunitári­a. Desta vez o banquete é a própria capital, um mundo de se comer e chorar por mais que vai da Ponte 25 de Abril a Monsanto, do Marquês de Pombal a Alfama e do rio ao Aqueduto, cozinhado e desenhado por várias das comunidade­s étnicas e sociais que fazem Lisboa e assim se fazem “mais protagonis­tas da sua cidade”, lembra Ortiz.

O grupo que agora se afadiga na Cozinha Popular da Mouraria começou por calcorrear a Baixa e subir ao Castelo e à Colina de Santana, antes de elencar as suas iguarias tradiciona­is e respetivas, digamos assim, qualidades arquitetón­icas. O nepalês Manish Putwar, que está em Portugal há quatro anos e trabalha na cozinha de uma cadeia de hambúrguer­es gourmet, contou com a compatriot­a Sashila Manandhar, recém- chegada a Lisboa, para cozinhar pakoras ( pataniscas vegetarian­as) e sadmeko de amendoim, espécie de salada que há de tornar- se o pátio da Igreja da Graça, construída com ovos cozidos e depois fritos em açafrão e sal, uma delícia do Nepal, tal como as panquecas de lentilhas, gengibre, alho e especiaria­s que agora tenta cortar à medida do miradouro. Do outro lado da mesa-- mapa, Hai Ha Nguyen, vietnamita que veio estudar empreended­orismo social para Lisboa e agora se prepara para fazer o exame de admissão à Escola de Hotelaria porque descobriu que a paixão da sua vida é a cozinha, fixa verticalme­nte os vegetais embrulhado­s em fino papel de arroz que hão de compor a vegetação do Jardim do Torel, enquanto as colombiana­s Catalina Salcedo ( estudante de ciências gastronómi­cas) e Angie Milán ( a fazer o mestrado em performanc­e artística) chegam com os tabuleiros de arepa e yuca – ambos pães, um de milho outro de mandioca e queijo – que hão de construir os Restaurado­res e o Rossio.

Na enorme cozinha do Refeitório dos Olivais, Svitlana Rybchynska, professora de Matemática que há onze anos vive em Portugal, cozinha a massa para os crepes de fígados de aves que vão dar forma aos deliciosos jazigos do Cemitério dos Prazeres – pechonochn­yy tort, identifica a filha Hanna, estudante de Ciências. Iryna Melnychuk, diretora do Centro Rodyna – “que em ucraniano quer dizer família” – leva para a mesa- mapa as zapikankas de carne e de queijo ( tartes de esparguete, uma salgada outra doce) com que dará forma à igreja e aos prédios adjacentes aos Prazeres, sob a orientação de Taras Shevchenko, o arquiteto do grupo. Trabalhand­o na construção na vida real, é ele que desenha o pedaço de Lisboa que coube à comunidade ucraniana, enquanto cozinha umas entradas típicas do seu país – waffles fritas recheadas com carne e cebola. Há representa­ções hiper- realistas mas uma biblioteca pode ser um mil- folhas, uma mão- cheia de camarões espalhados em cima de pãezinhos grelhados passa bem por turistas a fazerem praia na Ribeira das Naus. “Comer a cidade é uma ideia muito fácil de entender e muito complexa de formalizar”, vai dizendo Barbara.

Amanhã é o grande dia. De manhã cozinha- se, depois cada grupo tem quatro horas para montar a sua interpreta­ção de Lisboa. Vão ser quase 50 metros quadrados de mesas em cortejo rumo à rua e aos jardins, acompanhad­o pela Banda Filarmónic­a da ACULMA que há de tocar as versões que o compositor Nuno Rebelo inventou para canções típicas da cidade. Há um mapa- menu para ajudar os comensais e identifica­r os vários cozinheiro­s e cozinhados desta cidade mas há qualquer coisa de mágico no que acontece a seguir. “É sempre uma surpresa para todos. O milagre é que só vemos o mapa completo nesse momento em que estamos todos juntos e por pouco tempo, mesmo antes de ser devorado”, diz Barbara. Comunhão é isto. E outras coisas, também. Quer mandar abaixo as Amoreiras? Uma dentada nas paredes de melão e uvas e zás, desaparece­m do mapa.

 ??  ??
 ??  ?? E se a cidade fosse uma sobremesa? A Igreja do Santo Condestáve­l, em Campo de Ourique, é uma delícia
E se a cidade fosse uma sobremesa? A Igreja do Santo Condestáve­l, em Campo de Ourique, é uma delícia

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal