Cinco estrelas
Além do Quixote, muitos são os convocados para esta lauta ceia de referências de Mega Ferreira
Anda por aí uma maré de contos que só os adeptos de uma qualquer teoria literária da conspiração sentenciarão como um fruto sazonal – a Mário de Carvalho e a José Eduardo Agualusa junta- se, sem atraso nem prejuízo, António Mega Ferreira, com 13 histórias curtas de ideias fortes, capazes de percorrer alguns dos vértices comuns ao autor. Apaixonado pela história mas sobretudo – arrisco eu – pela história da cultura, entendida no seu mais largo espectro, sente- se à vontade para começar a sessão com a “sequela” de um western que, mais de 50 anos depois, ninguém esquece: Rio Bravo. Consegue aquilo que queria, ou seja, levou- me a rever o filme de Howard Hawks, para poder encadear o final da fita com o início de um episódio que, em tempo de “paz” na terriola, faz ressaltar as ansiedades íntimas, os “fantasmas” e as ambições, os modos de cada uma das personagens principais. Honra ao autor que, através de uma narrativa tensa mas sem conflitos abertos, traz de volta John Wayne, Dean Martin, a belíssima Angie Dickinson, até Ricky Nelson.
Senta- os à mesa, sem vénias nem segregações, com Dom Quixote de La Mancha, entrevistado num luxuoso e distinto hotel de Madrid. O fidalgo revela- se tagarela mas rigoroso no relato das relações com Dulcineia ( afinal uma senhora que gosta de ir às compras e de se perder nas tentações das boutiques), com Sancho Pança, acima de todos com Cervantes, seu criador. Tem direito a uma das tiradas que apetece guardar quando advoga isto: “Todos os homens existem, mais ou menos, dentro da loucura dos poetas. Pouco importa que vivam ou não, ou que deles nos fique memória diferente da que os seus criadores lhes inventaram. Cervantes era um louco, é preciso dizê- lo, porque só um louco podia ter visto com tamanha clareza as razões de D. Quixote e as desrazões de Sancho. (…)E a inversa, claro, também é verdadeira.” Além do Quixote, muitos são os convocados, mesmo na condição de aparente figurantes, para esta lauta ceia de referências: Mega Ferreira toca em Proust, Camus, Rousseau, Marx, Nietzsche, Kafka, Beckett, Erik Orsenna, Lawrence Durrell. Mas, cautela, não ficamos nunca diante de um gratuito exercício de name dropping; se o escritor os designa, sente- se que o faz com a vontade generosa de os querer recomendar a quem por aqui passa. Assim se explica, também, o discurso suplementar de Zerlina, capaz de repor algumas verdades ( ou apenas a sua verdade) diante dos espectros de Don Giovanni e, porque não?, de Mozart.
Ressaltam de vários destes capítulos – alguns deles recuperados a revistas acima de suspeita, como Ler, Egoísta, O Escritor, um deles originalmente lido aqui mesmo, no DN – figuras solitárias, abandonadas, desiludidas. Como o serôdio cônsul português, desterrado para Salvador, que se prende de desejos por uma mulata muito mais nova. A imagem escolhida pelo autor antecipa o desfecho: “Rosália [ a jovem] administrava as zonas do seu corpo com férrea parcimónia, como um general distribui no terreno os meios militares ao seu dispor.” Há homens trocados por outros homens ou por mulheres, há o instinto de recusa de uma guerra, há uma cortante e espantosa variante do “estado da nação” ( na notável Carta do Doutor José Anastácio da Cunha para o conde Anckarbljiken), há um salteado de afetos que se descobre ou reencontra com enorme prazer. E há um espantoso momento de confissão, de entrega, de transcendência simples – passe o paradoxo – em Rosas, originalmente publicado em memória de Manuel Hermínio Monteiro. Lê- se isto: “Dez vidas inteiras não chegariam para lermos tudo o que nos apetece.” Nada mais rigoroso. E António Mega Ferreira, desde O Heliventilador de Resende, com escala obrigatória em A Expressão dos Afectos, continua no rol dos que nos agravam o défice entre o que podemos e o que gostaríamos.