Vila do Conde na encruzilhada entre documentário e ficção
O Curtas continua a ser uma bela montra de contrastes do cinema contemporâneo – Rodrigo Areias e Sergei Loznitsa assinam algunss dos títulos mais interessantes
Num dos mais belos filmes vistos na competição nacional do Curtas Vila do Conde, Rodrigo Areias regista a solidão de um homem, Constantino ( Valdemar Santos), que durante o dia toma conta do seu rebanho, t rabalhando à noite como vigilante de um museu. Rodado na Covilhã, com apoio da Universidade da Beira Interior, chama- se O Guardador e possui a beleza austera de uma crónica ficcionada que desafia a rotina cruel do próprio tempo, aliás sustentada pelo contido realismo da notável direção fotográfica de Jorge Quintela.
O Guardador pode servir de símbolo do que de mais interessante se tem visto em Vila do Conde ( o festival encerra amanhã, com um concerto dos Lambchop). Isto porque o certame tem tido o mérito de mostrar que, atualmente, para o melhor ou para o pior ( do meu ponto de vista, sobretudo para o pior), existe uma clivagem muito nítida entre o cinema que não desiste de contar histórias e algumas experiências que, em nome de um vanguardismo militante, parecem desinteressar- se de qualquer relação com o espectador. Nesta perspetiva, importa também destacar a candura de Maria do Mar, de João Rosas, mostrando que é possível abordar o imaginário erótico juvenil recusando a mediocridade de Morangos com Açúcar e seus derivados. Aliás, na sua depuração que resiste ( quase sempre) aos efeitos “simbólicos”, Maria do Mar reflete também um valor mais que estimável. A saber: a importância de trabalhar os atores – e com os atores – para além de clichés dramáticos ou geracionais.
E não se julgue que tal problema decorre de qualquer nostalgia por um cinema “arrumadinho”, fiel ao mais grosseiro academismo – já nos basta a monstruosidade quotidiana das telenovelas. O problema está na inexistência de qualquer valor narrativo que lide com a questão básica do envolvimento do espectador. O reverso disso é a tristeza paródica que encontramos num filme como Kung Fury, de David Sandberg, ilustrando uma das pragas dos nossos tempos: a caricatura boçal, vulgo YouTube ( neste caso a partir das convenções dos filmes de artes marciais), como se nada mais restasse além das patéticas tentativas de imitar a sofisticação dos primeiros filmes de Quentin Tarantino, com inevitável destaque para Pulp Fiction ( 1994).
Enfim, convém não esquecer os momentos excecionais proporcionados pelo filme de Sergei Loznitsa, The Old Jewish Cemetery. Digamos que se trata de um exercício do mais primitivo documentarismo, dando- nos a conhecer o cemitério judeu de Riga, capital da Letónia, marcado pelas muitas convulsões da história da Europa, desde a sua abertura em 1752. Em todo o caso, Loznitsa evita qualquer solução previsível, seja uma voz off “descritiva” seja a acumulação de entrevistas: The Old Jewish Cemetery organiza- se como um mapa de olhares através dos lugares circundantes que, afinal, nos conduz a algo que, sendo físico, é sobretudo do domínio da memória afetiva – cinema simples, grande cinema.