Do pé para o coração
Preto e branco são as cores dos exames raios X. Brigitte Sy, na sua segunda longa- metragem, escolheu- as para ser fiel ao contraste de uma época – os anos 50 – e, mais concretamente, produzir a “radiografia” sentimental de Albertine Sarrazin. Com efeito,
OAstrágalo, romance autobiográfico de Sarrazin, publicado em 1965 ( um equivalente ao
Diário de Um Ladrão, de Jean Genet), é a base deste estilizado retrato da intimidade, firmado na insubordinação e desejo de autonomia de uma jovem mulher. Levado cedo ao cinema, em 1968, por Guy Casaril, é contudo na nova versão de Brigitte Sy que se encontra o mais conseguido porte formal para contar a história de uma fuga, de paixões indomáveis e prostituição. Sobretudo, a história de uma dessas paixões, a mais arrebatadora – Julien –, que é, simultaneamente, o vislumbre da felicidade e do infortúnio. Tudo começa numa noite chuvosa, quando Albertine ( Leïla Bekhti) foge da prisão, e ao saltar o muro quebra um osso do pé, o astrágalo, esse subtil detonador dos eventos seguintes... Julien ( Reda Kateb), também um fugitivo da justiça, presta- lhe auxílio na fuga, levando- a para Paris, com um novo documento de identificação e uma peruca loira: apenas a perna que coxeia não tem maneira de se disfarçar. Os 18 meses a monte são o tempo de liberdade que fermenta nela a escrita, depois materializada no retorno à prisão. A poesia de Albertine funciona como antídoto para se proteger do silêncio de Julien, e os seus passeios pelas ruas de Montmartre são os canais de encontro com figuras do passado e a dor do presente. “Eu quero viver, mas onde? Seduzir, mas quem? Escrever, mas o quê?” Patti Smith destaca estas interrogações do espírito inquieto de Albertine Sarrazin, no prefácio a uma edição americana do livro OAstrága
lo, assinalando- o como uma das obras mais importantes na sua vida. E as questões que Sarrazin coloca não se ficam pela retórica; é isso que livro e filme( s) celebram: alguém que fez de uma lesão física a força de alma da sua escrita.