Diário de Notícias

Acordo tentado com plano grexit ao fundo. O futuro segundo Blanchard

- J OANA PE T I Z

Fernando Fernandes, economista. Podia ter sido assim a apresentaç­ão, a conversa virada para a Grécia, a política e a condução dos negócios e do país. Mas esses são os temas em que nem quer tocar. O destino empurrou- o para a cozinha e foi aí, num restaurant­e na Costa de Caparica, que a licenciatu­ra em Economia acabou mesmo antes de se concretiza­r, trocada por uma sociedade com o irmão no Pátio Alentejano. “Tinha 20 anos, é aquela idade em que se vai à aventura, e ainda bem que fui.”

Dois anos bastaram para atravessar a ponte e mudar Lisboa. Tinha 23 anos quando abriu, com o amigo José Miranda, o Pap’açorda. “Foi lá que aprendi tudo, aprendi com os clientes.” Sorriso rasgado, vai contando 34 anos de Pap’açorda e 16 de Bica do Sapato, onde Fernando e José Miranda – que ainda faz os magníficos arranjos de flores que decoram os restaurant­es e que, dizem as más línguas, quase os levaram à falência – têm mais dois sócios, o arquiteto Manuel Reis, que decorou o restaurant­e no Bairro Alto e dá a cara pelo Lux, e o ator John Malkovich. Casas que têm em comum a excelente comida tradiciona­l portuguesa e o facto de estarem entre os melhores da cidade. “É para isso que trabalho, para que as coisas durem e se criem pilares novos.”

Cumpriment­a Mafalda Veiga, que chega para almoçar, e cinco minutos mais tarde o presidente da NOS, Miguel Almeida. É sempre assim, na Bica, cruzam- se médicos, gestores, empresário­s, jornalista­s – para alguns é uma espécie de segunda casa, como acontece por exemplo com Pedro Marques Lopes –, músicos, políticos. “Posso achar que são bons ou maus, mas a minha opinião é para os amigos, é para casa. Recebo todos da mesma maneira, são todos meus clientes.” E são- no há décadas.

Na esplanada virada para o rio, um dos sítios mais bonitos de Lisboa, dispensada­s as entradas, começa por falar da sua primeira casa para desfazer os boatos de que teria fechado. “Está aberto e é para estar muito tempo. Agora só fazemos jantares; é o meu filho que está lá, eu estou mais aqui na Bica do Sapato – este dá- me mais trabalho, é quatro vezes o Pap’açorda. Lá tenho 14 pessoas e aqui quase 60.” O tom não mudou, mas há um novo entusiasmo quando conta que o filho, Ricardo, tirou o curso de Hotelaria em Les Roches ( a melhor escola do mundo), estagiou em Nova Iorque, no México, em Barcelona. “Tem 25 anos, está a dar os primeiros passos, mas é um miúdo responsáve­l e gosta muito do que faz. Que é o fator mais importante de tudo; encontrar uma vocação é o melhor que pode haver. É por isso que aqui estou há tantos anos.”

É por isso também que não se importa de não ter muito tempo para ler – “sobretudo romances e livros de gastronomi­a bem feitos. Cozinha Tradiciona­l Portuguesa, da Maria de Lourdes Modesto, marcou- me porque foi a reviravolt­a que definiu a importânci­a que a nossa cozinha merece” – e ver os concertos a que gostaria de assistir. “Agora no Alive queria ver tudo no palco Heineken, e os Blur no Super Bock Super Rock.” Se não fosse a comida, talvez tivesse virado a vida para a música. “É um hobby, gosto de tudo desde que seja bom, sou muito eclético. Pode parecer cliché, mas é mesmo assim. Demorei a aderir ao CD – o vinil é um objeto muito mais interessan­te –, mas não sou elitista, acho que há espaço para tudo.”

Os seus pratos são outros, mas vai fazendo o gosto ao dedo. “À quinta- feira faço de DJ aqui na Bica, dá- me pica, dá- me imenso prazer pôr a música de que gosto e animar o ambiente. Seria pretensão dizer que sou um DJ. Sou o Fernando e gosto de botar uma musiquinha. E tenho programa se-

manal na Radar, a Terça- Feira Gorda, em que dou música e receitas às pessoas. Agora está parado porque não tenho tido tempo de preparar emissões.”

O rosbife chega, montado na salada russa. A tarde está quente, a comida fresca. Quando não está na Bica do Sapato, Fernando está no escritório – “a administra­r”. É o lado que o entusiasma menos de uma vida que diz ser de sacerdócio. “É um pouco difícil mas é o caminho que escolhi, temos de estar presentes nos momentos que as pessoas querem desfrutar. E eu gosto de dar- lhes esse prazer. E se é para estar, tem de se estar mesmo. Senão as coisas não funcionam tão bem. São muitos egos para gerir. Mas se fosse fácil não tinha graça. Também gosto de estar estendido na praia ( aproveita para isso os domingos de verão, altura em que a Bica suspende o brunch), mas quando é trabalho, se não houver uma picardia qualquer não me interessa.”

É isso, e não o dinheiro, que o move. Hoje é muito difícil conseguir lucros na restauraçã­o. “Recebo um salário, nem penso em proveitos. O produto de qualidade é caro e com o IVA a 23% – a maior atrocidade que fizeram à restauraçã­o. Neste negócio, é preciso olhar sempre para os custos – quem não o fizer está tramado –, mas já se pensou muito menos em dinheiro, hoje tudo o que se faz é em função de quão caro fica. Já tive de abdicar de fazer melhoramen­tos porque tinha de pagar as contas, os salários, os fornecedor­es.” Apesar de ter sentido a quebra – quem ia duas ou três vezes passou a ir só uma vez por semana, os salários foram congelados, – acredita que as coisas começam a melhorar.

Vem o café – só para mim. Fernando diz- me que não tem medo da concorrênc­ia – “é muito saudável perceber o que os outros fazem melhor do que eu, analisar e melhorar” – nem de se deixar influencia­r por pratos que experiment­a noutros sítios. Mas sai pouco. É mais frequente comer em casa, no Chiado. “Gostava de sair mais e perce- ber o que se está a fazer, abriu tanta coisa, a cidade mudou.”

Não está certo de que a mudança tenha sido para melhor. Preocupa- o a falta de um olhar estratégic­o para Lisboa. “O caminho do Oriente começava aqui – a Bica seria uma âncora num projeto de expansão da cidade, após a Expo’ 98 –, mas isso foi esquecido. Uma das coisas que me entusiasma­ram neste espaço foi sentir que a cidade ia crescer nesse sentido, mas as coisas não acontecera­m. A zona da Expo está lá mas não houve prolongame­nto da cidade.” Para que isso acontecess­e, diz, era preciso haver uma aposta em infraestru­turas, em opções culturais, “havia que dividir os acontecime­ntos pela cidade e tentar que tudo fosse interligad­o, para um sítio não ter de morrer para outro nascer. Porque é que se concentra tudo no Terreiro do Paço? Porque não distribuir a oferta por outros bairros, abrir teatros, cinemas?” Mas afinal porque é que a cidade se canibaliza? “Porque não há muita população fixa, não somos tantos que possamos dinamizar todos os sítios, e em vez de se pensar a cidade como um todo tem- se pensado numa lógica de pequenos burgos. Os bares é que interessam. A cultura virou- se toda para os bares. Mas a cidade tem vida própria e todos os sítios têm um começo e um fim, e se não os olharmos como algo maior acabam por morrer. Tocar só num sítio faz morrer os outros.”

Fernando sabe do que fala: é o grande responsáve­l por manter a Bica e o Pap’açorda há décadas na moda e nos roteiros internacio­nais. Entre os melhores dos melhores. Só tem um defeito: o jornal que oferece aos clientes é o Público. Mas isso resolve- se.

“Há restaurant­es fantástico­s: o Cibrèo em Florença, o San Angel Inn na Cidade do México, o Moro em Londres. E um de que sou sócio em Lisboa, a Bica do Sapato. Mas o meu preferido no mundo inteiro é outro que os meus sócios Fernando Fernandes e José Miranda têm, o Pap’açorda”, disse John Malkovich ao The Telegraph há um mês. E neste caso, é insuspeito.

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