Júlio Pomar “Era facílimo encontrar o Almada ou o Dacosta na Brasileira. O hábito de trabalhar era muito raro”
Pintor
Podia começar por falar do pintor que me abre a porta e sobe ao primeiro andar – o sótão da casa – vagarosamente. Ou dos retratos inacabados que tem sobre os cavaletes. Ou das tintas e pincéis que descansam à espera de ser desinquietados. Ou da luz do ateliê, a misteriosa luz que os pintores criam, talvez irradiem. Mas vejo as fotografias que Gerardo Santos fez antes de nos sentarmos para a entrevista e está aí tudo, o sorriso de mágico meio perverso, as cores, a silhueta, as mãos, a posição do corpo. A total disponibilidade para fazer o que o fotógrafo lhe pediu, uns centímetros para a direita, agora o pincel na mão, agora olhe para cima, agora ligeiramente mais para baixo, agora a sua sombra. Oitenta e nove anos, lisboeta que adotou também a cidade de Paris, uma vida inteira de pintura e algumas belas passagens pela escrita – do ensaio à poesia e às divertidas letras para fados. Desde o tempo de O Almoço do Trolha, o quadro dos tempos de neorrealismo que no próximo ano será exposto no Centro de Arte Manuel de Brito, tantos temas – touros, corridas de cavalos, Maio de 68, tigres, índios, fábulas, a caça ao snark, o erotismo –, tantos temas a divertir- lhe a curiosidade, transformados em pintura vigorosa, irónica, grave, cores vibrantes. Sentamo- nos a conversar num recanto do ateliê, ele na cadeira menos confortável, mas mais adaptada às costas que incomodam. O leitor fica livre de imaginar as entoações, as insinuações, as gargalhadas. A paciência com que apesar do cansaço foi respondendo, hesitando, mudando de assunto. As recordações de infância de um pintor são também quadros: o movimento do Tejo nos anos 1930, o gado a descer do comboio em Entrecampos e a atravessar as avenidas até ao matadouro, os postais de paisagens a preto e branco que o pai escrevia à mãe. O pai que ele não conheceu.