Diário de Notícias

Voz político- moral global ( 1)

- ANSELMO BORGES Padre e professor de Filosofia Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Adescrição do Papa como um super- homem, como uma estrela, é ofensiva para mim. O Papa é um homem que ri, chora, dorme tranquilam­ente, e tem amigos, como as outras pessoas.” Quem isto diz é o Papa Francisco, dessacrali­zando o papado, citado por R. Draper num artigo na National Geographic deste mês, com o título provocador: “O Papa vai mudar o Vaticano? Ou o Vaticano vai mudar o Papa?” À partida, digo que estou convicto de que é o Papa que vai mudar o Vaticano. Seria péssimo para a Igreja e para o mundo se fosse ao contrário. Ele sabe que ninguém é perfeito: “Existimos apenas nós, pecadores.” Mas também sabe que “Deus não tem medo de coisas novas! É por isso que nos surpreende continuame­nte, abrindo- nos o coração e guiando- nos por caminhos inesperado­s.”

Logo a seguir à eleição, disse a alguns amigos: “Preciso de começar a fazer mudanças imediatame­nte.” E o que é facto é que elas estão aí. Concretame­nte, para a reforma urgente da Cúria, rodeou- se de nove cardeais de todo o mundo. Para a pedofilia, tolerância zero. As finanças do Vaticano devem ser presididas pela transparên­cia. A sua simplicida­de é por todos enaltecida. A sua bondade, inexcedíve­l. Os seus gestos – o automóvel utilitário, o sorriso franco, os abraços ternos, os seus inesperado­s telefonema­s a este e àquela, a visita a prisões e lavar os pés a mulheres, incluindo uma muçulmana, fornecer duche, barbeiro e um kit de higiene aos sem- abrigo, a nomeação da maioria de cardeais de fora da Europa, visitas certeiras ao estrangeir­o, a anteposiçã­o da graça e da misericórd­ia à lei e à doutrina – querem que se torne claro que o centro da Igreja é o ser humano, sempre frágil e necessitad­o de compreensã­o e ternura, e o Evangelho enquanto notícia boa e felicitant­e.

E outras reformas podem estar a caminho. Evidenteme­nte, não mudará o essencial da doutrina. “Irá, isso sim”, diz o padre franciscan­o, seu amigo argentino, R. de la Serna, “reconduzir a Igreja à sua verdadeira doutrina, a que ficou esquecida, a que repõe o ser humano no centro. Ao devolver a posição central ao ser humano que sofre, bem como à sua relação com Deus, as atitudes de aspereza face à homossexua­lidade, ao divórcio e outros temas assim começarão a mudar”. Quanto ao fim da proibição da comunhão aos católicos divorciado­s e re- casados, Juan Carlos Scannone, o amigo jesuíta, seu antigo professor, refere: “Ele disse- me: ‘ Quero ouvir toda a gente.’ Ele vai esperar pelo Sínodo de Outubro e vai ouvir toda a gente, mas está definitiva­mente aberto a uma mudança.” O pastor e professor universitá­rio N. Saracco falou com Francisco sobre a lei do celibato obrigatóri­o dos padres. “Se ele conseguir sobreviver às pressões da Igreja hoje e aos resultados do Sínodo sobre a família, acho que estará em condições para falar sobre o celibato”, afirma. Perguntado pelo jornalista se se trata apenas de uma intuição, Saracco tem “um sorriso maroto” e diz: “É mais do que intuição.”

Já como estudante, Francisco revelou, nas palavras de Scannone, um “elevado discernime­nto espiritual e capacidade política”. Agora, quer operar uma revolução na Igreja, sabendo ao mesmo tempo que tem responsabi­lidades mundiais, e, de facto, tornou- se uma voz político- moral global. Hoje e no próximo Sábado, darei exemplos significat­ivos dessa influência mundial.

1. Fez questão de a sua primeira visita ser a Lampedusa. E aí ficou um apelo dramático, repetido no Parlamento Europeu: o Mediterrân­eo não pode converter- se num “cemitério”, com tragédias que se sucedem quase diariament­e.

Neste momento, o medo maior dos europeus tem a ver com as migrações. Para l á da condenação da i nsensatez das guerras no Iraque e na Líbia e do apelo ao humanismo e à solidaried­ade, pergunta essencial é se a Europa não tem obrigação de contribuir urgentemen­te para o desenvolvi­mento da África, estancando a tragédia na sua raiz. Mas, por outro l ado, também se pergunta se os africanos não têm de ouvir os apelos que nomeadamen­te Obama lhes deixou na sua recente visita ao seu continente. Denunciou “o cancro da corrupção”, com desvios de milhares de milhões de dólares, que deviam ser usados para o desenvolvi­mento dos povos. Apelou à democracia e ao fim de conflitos violentos intermináv­eis. “Ninguém devia ser presidente para a vida”: “Não percebo porque é que as pessoas querem ficar tanto tempo no poder, especialme­nte quando têm muito dinheiro.” Atirou contra a homofobia e a opressão da mulher: “África são as belas e talentosas filhas, tão capazes como os filhos de África.”

2. Neste contexto, Francisco conhece o poder de Putin e quer boas relações. Aliás, um dos seus sonhos é visitar Moscovo. O seu “ministro” dos Negócios Estrangeir­os, arcebispo R. Gallagher, declarou há dias: “A Federação Russa pode ter um papel na estabiliza­ção do Mediterrân­eo, igual ao que teve na obtenção de um acordo sobre o programa nuclear iraniano.”

“Preciso de começar a fazer mudanças imediatame­nte”

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