Estás pelo leão ou pela criança abusada?
Os humanos gostam de imaginar situações extremas que averiguem carácter dos outros –eo seu. É famosa a experiência de Philippa Foot, sobre ética, conhecida como Trolley Problem, na qual os integrantes do estudo eram questionados sobre a possibilidade de, puxando uma alavanca, salvar a vida de cinco pessoas amarradas à linha de comboio. No entanto, a composição, ao mudar de carris, mataria outro homem. A escolha mostrou- se mais difícil quando, em vez de puxar a alavanca, teriam de empurrar o tal homem de uma ponte para salvar os outros cinco. Tudo parecia mais simples, porém, quando se sugeria que esse homem era um vilão perigoso. Lembrei- me deste teste quando, na sequência da história de um dentista que caçou um leão chamado Cécil, alguém me perguntou: entre o teu cão e uma pessoa, quem salvarias?
( Ponto prévio e longo: não sofro do existencialismo de Luís XIV, ou seja, não outorgo à vida humana nenhuma singularidade divina, há suficientes descobertas científicas para acreditar que somos um prodigioso acaso ( a formação da Terra, a quase extinção do Homo sapiens há 70 mil anos), e que tudo é feito da mesma matéria estelar que teve a sua origem no Big Bang – sejam planetas, sapos ou humanos. Isto é um facto – num universo que se transforma há 13,8 mil milhões de anos. Não uma metáfora poética. Estarmos vivos é um milagre de probabilidades, não de deus – o nosso ADN seria capaz de criar tantas pessoas diferentes como aquelas que já existiram à face da terra, ou seja, somos nós por acaso, mas poderíamos ser muitíssimos outros. Não ser, ou ser nada, é bastante mais comum do que existir.
Reconheço que a evolução das espécies foi generosa connosco quando, ao longo de milhões de anos, desenvolveu um polegar oponível e capacidades cognitivas que hoje nos permitem escrever ou usar a internet. Mas essa alegada superioridade não mitiga a lição de humildade que é saber que temos a mesma origem de tudo o que existe e que somos um cisco breve na dimensão e no tempo do universo. No entanto, porque somos etnocêntricos ( afinal, temos de viver connosco uma vida inteira) e porque as religiões an- dam há milhares de anos a convencer- nos de que somos especiais porque fomos criados por deus – que, sadicamente, nos fez doentes e nos obrigou a ser sãos –, acreditamos estar acima dos animais, cremos ter mais direito à vida ou que somos os escolhidos, quando, na verdade, aquilo que nos distingue – uma consciência complexa, capaz de escolhas éticas e morais – deveria fazer de nós os guardiães da natureza, não os capatazes. Como dizia o tio do Peter Parker, agora mais citado do que Oscar Wilde: com grandes poderes, grandes responsabilidades.
Voltando à pergunta: entre o teu cão e uma pessoa, quem salvarias? A resposta depende de variáveis, mas não tenho dúvidas de que salvaria o meu cão muitas vezes. Para mim, a questão não está apenas relacionada com o valor abstrato de uma vida – um homem, um cão, um rato –, porque não acho que a minha existência seja mais importante do que a de outro animal. Aliás, se alguém preferisse salvar o seu cão em vez de mim, eu perceberia. A escolha é feita tendo em conta a relação que estabelecemos com essa vida em perigo – por exemplo, o vilão do Trolley Problem, ou alguém de quem gostamos. O que quero dizer é que a relação de amor e proximidade com o meu cão é mais relevante, para mim, do que um estranho. Se tivesse de salvar o meu cão ou o ditador Mugabe, a escolha era fácil. Se me dissessem que, em vez de um tirano, se tratava de um familiar, tudo se complicaria. A compaixão funciona muito por cercania e identificação. Por emoção. Se uma mulher vir o marido matar um estranho, a sua atitude, mesmo que reprovadora, não será a mesma caso o veja a matar a filha de ambos.
Mas tudo isto são hipóteses excessivas e pouco prováveis. O carácter estabelece- se todos os dias em gestos menos drásticos, como dar a cara e a voz por algo. Quando Émile Zola escreveu “O destino dos animais é para mim mais importante do que o medo de parecer ridículo”, devia conviver já com essa postura marialva, ainda hoje presente, daqueles que acham que proteger e tratar bem os animais é sinal de fraqueza e de mariquice, um descaso pela vida humana em favor dos bichos.
“Toda a gente se indigna com o leão, e a criança que foi abusada?”, escrevia alguém no estilo maniqueísta das redes sociais, como se uma coisa excluísse a outra e não fôssemos capazes de ambas. Não é leão ou criança abusada. Tudo importa e é algo bem mais simples, segundo Schopenhauer: “A compaixão pelos animais está intimamente associada à bondade do carácter.”
É que não basta nascer humano, mesmo que abençoado pela unicidade divina ou crente na superioridade da espécie, para se ser uma boa pessoa.