O HOTEL SECRETO QUE GUARDA A HISTÓRIA DE UM HOMEM E DO SEU CÃO
Ao fundo de uma travessa estreita de piso torto esconde- se uma das mais deslumbrantes vistas de Lisboa e a estética irrepreensível de um hotel que foi estúdio e casa de um fotógrafo berlinense
Quem entra no Memmo Alfama, depois de percorrer um beco escondido e escuro, de piso de pedra negra irregular e escorregadia, apropriada a entortar pés e partir saltos, fica talvez demasiado surpreendido com a beleza cool, hiper- moderna e sem sombra de pastiche do hotel e a vista que, ostentada em cada janela, se rasga a 180 graus no terraço para reparar numa foto na parede do bar. Não é, porém, uma foto qualquer: assinala a memória recente do espaço, que foi a casa e estúdio do autor, um f otógrafo berlinense que ali viveu com o seu cão. Alexander Koch, alemão descendente de nazis pelo l ado do pai e de refugiados j udeus pelo da mãe, encontrou o cão, torturado por energúmenos, numa praia portuguesa. Levou- o para casa, tratou- o e ficaram inseparáveis – o grande alemão de cabeça rapada e olhos azuis e o seu grande rafeiro com pelo de esfregão, sempre juntos nas ruas de Lisboa.
Filho do diretor da f ábrica da Leica em Famalicão, falando português fluentemente, Alexander, que começou a trabalhar como fotógrafo profissional em 1983 e se tornou internacionalmente conhecido pelo seu trabalho de publicidade e moda mas também por outros projetos, como o que o levou a visitar todos os países da ex- Cortina de Ferro em busca da memória dos judeus que ali viveram, estabeleceu- se em Portugal a partir de 1994, primeiro no Porto, mudando- se em 2000 para a capital. “Andava à procura de encontrar um porto de abrigo, quer dizer, um sítio com o qual me estou a identificar, onde vivo bem, onde me encaixo bem e Lisboa coube- me lindamente”, explicou numa entrevista em 2009. “Gosto i menso da cidade, da maneira como ela se move, do tamanho, onde é que ela está localizada, do ritmo, e é uma cidade onde facilmente me sentia em casa, que é uma coisa um bocado inexplicável.” Na cidade que l he tão bem cabia escolheu viver no coração: um armazém abandonado que descobriu perto da Sé de Lisboa, o número 4B do Pátio do Marechal. Combinou com os donos fazer obras, reabilitar o espaço, e mais tarde, querendo comprá- lo, abater o valor da reabilitação no preço. No início das obras descobriu- se uma parte da muralha antiga da cidade e foi tudo embargado até que os responsáveis pelo património resolveram o que fazer com ela, mas Alexander lá acabou por conseguir aquilo a que se tinha proposto: um estúdio fantástico, de pé direito altíssimo, para o qual se entrava por uma porta de madeira rústica, no fim de um pequeno túnel. Ao fundo do estúdio uma pequena porta dava acesso à sua casa, com um quarto em mezzanine de cujas janelas se gozava uma magnífica vista sobre o Tejo. “Esteve ali mais de 10 anos”, conta o designer e vizinho ( vive na Rua da Madalena desde o início dos anos 90) Vasco Colombo. “Era um espaço muito engraçado, criava- se bom ambiente. Para todas as pessoas que passaram na vida dele, aquele espaço foi muito marcante.”
Vasco, 49 anos – nascido no mesmo ano que Alexander –, já visitou o hotel que tomou o lugar da casa do amigo. “Quando se ia por aquela alameda, que é muito modesta, a torcer os pés naquelas pedras, era surpreendente encontrar o estúdio como é hoje descobrir o hotel. Acho que ele ir i a gostar daquilo porque tem uma coincidência com o gosto dele – e isso é engraçado. Mas é estranho estar num espaço que conheceste tão bem, ver que mudou tanto, que onde era o quarto dele agora é o bar de vinhos, onde era a entrada do estúdio agora é a receção.”
Alexander resolveu abandonar Lisboa quando o edifício, com os outros que hoje integram o hotel, foi vendido, em 2009. “A situação foi muito traumatizante para ele, ter de sair dali, e ainda por cima o cão, que era como umir mão, morreu. Deram- lhe uma indemnização e ele resolveu voltar a Berlim.” O hotel começou a receber hóspedes a 1 de setembro de 2013, e inaugurou formalmente em 25 do mês seguinte; Alexander morreu a 9 de outubro. “Gostar de pessoas” Esta f ábula romântica, com um pouco de conto gótico, acrescenta ao Memmo, cujo nome convoca a ideia de memória e cujo conceito, como dos outros hotéis do grupo, sublinha a i ntenção de criar “emoções memoráveis”, uma espessura trágica. Mas não há relatos de sombras caninas, uivos ou vultos errantes de um homem e um cão nos seus corredores; as tonalidades claras e o espírito confortável, acariciante, do lugar desenhado pelo arquiteto Samuel Torres de Carvalho convocam antes uma nostalgia feliz, contemplativa, que r i ma com a ideia expressa por Alexander de uma cidade amigável, em que se cabe bem.
Uma sensação que Paulo Duarte, o diretor dos hotéis Memmo ( além deste existe o Memmo Baleeira, em Sagres, o primeiro do grupo, aberto em 2007, e vai surgir o Memmo Príncipe Real, cuja abertura se anuncia ainda para este ano), diz ter sido procurada. Desde logo, pela preservação de testemunhos “históricos” – da muralha da cidade cujo traçado o terraço acompanha aos fornos recuperados no interior e transformados em saletas – de um edificado que foi palácio, vila operária, fábrica e armazém, sem esquecer o seu habitante mais recente, comemorado na citada fotografia (“Viveu aqui uma série de anos, queríamos ter no hotel alguma coisa dele”). Mas também pela forma como se procura o diálogo com um bairro que reputa de “o mais autêntico de Lisboa” e no qual “não havia nenhum hotel com estas características, aliás não havia nenhum hotel- hotel, e claramente faltava, por aquilo que se via nas pesquisas do Google”: “Tentamos que o hotel não seja um corpo estranho. Por exemplo, no conjunto de edifícios que comprámos – eram todos do mesmo dono – havia inquilinos que mantivemos, pessoas tradicionais de Alfama. Acho que isso contribui para que os nossos clientes não sintam que entraram numa ilha absurda. E fazemos todas as manhãs um tour grátis pelo bairro ( ver texto nestas páginas), para que não se sintam desconectados, para conhecerem o mapa. Tentamos que o façam logo no dia seguinte à chegada. É como um ser- viço de concierge personalizado. Que eu saiba somos o único hotel a fazê- lo.” Uma ideia copiada, assume, dos hostels: “Para mim são a maior invenção da década, pela abordagem de proximidade. Acho que hoje em dia as pessoas procuram exatamente o contrário da distância e formalidade dos hotéis tradicionais. O que nós procuramos é uma relação de interatividade com os clientes.” O esforço parece ser recompensado: nos comentários deixados nos sites de booking, os clientes referem, antes mesmo do deslumbre com o terraço magnífico – decerto um dos locais mais bonitos da cidade
– o staff. Foi Paulo Duarte, garante, a escolher cada um dos 24 empregados ( 70 ao todo no “universo Memmo”), com um critério específico: “gostar de pessoas”: “Muitos nunca tinham trabalhado em hotéis, ou sequer em turismo. O recrutamento teve mais que ver com critérios de perfil e emocionais do que com aspetos técnicos. Achamos que a hotelaria é um negócio emocional.” 95% de taxa de ocupação E este negócio de emoções, ao arrepio da ideia de turismo massificado e descaracterizado, está sem dúvida a correr bem. Além de ter Em cima, o terraço principal ( são três), com o lado nascente da sua vista de 180 ºe a piscina de ladrilho encarnado em espelho; Alexander Koch, o fotógrafo berlinense que viveu onde hoje éo Memmo, aqui no seu estúdio, que ocupava toda a receção e a sala de pequenos almoços do hotel; uma perspetiva do edifício e do bar; Paulo Duarte, diretor dos hotéis Memmo ( são dois e vai abrir o terceiro), com outra parte da vista panorâmica ao fundo. sido eleito, em 2014, pela reputada revista de design, moda e life style Wallpaper, espécie de bíblia i nternacional do bom gosto, como um dos 48 melhores hotéis urbanos do mundo, o pequeno Memmo Alfama ( tem apenas 42 quartos) atingiu uma taxa de ocupação de 95% em 2015 a um preço médio de 200 euros/ noite em quarto duplo. O grupo dirigido pelos acionistas Rodrigo Machaz, João Corrêa Nunes ( fundadores) eos ir mãos José Luís e Manuel Carrilho de Almeida só pode pois estar muito satisfeito com este seu projeto, no qual investiu seis milhões e meio de euros, os quais conta recuperar “em seis, sete anos, o que”, garante Paulo Duarte, “é muito bom para este tipo de negócio, que não é uma corrida de 100 metros”. A clientela, na qual ponderam os quarentões, é constituída sobretudo por europeus, com os alemães à frente, seguidos de perto pelos franceses, com os britânicos, suíços e belgas no pelotão; jovens, só a partir dos 16 – “Não aceitamos crianças por causa do tamanho dos quartos ( são pequenos) e por causa dos terraços.” E, adivinha- se, para que a respetiva tranquilidade mágica, na qual se entra como numa pintura, não seja abalada por guin- chos e correrias: é toda a beleza de Lisboa que ali i mpõe silêncio. Para sentir o bem que esta cidade nos cabe, diria Alexander.