O mundo ao contrário
Imagine- se uma sociedade em que os ramos mais avançados e cobiçados da Medicina, mas também da investigação e da experiência, dissessem respeito às “ciências do envelhecimento”. Não no sentido do desejo, às vezes obsessivo, de o adiar, de o empurrar lá mais para diante, de o disfarçar, mas, exatamente ao contrário, com o objetivo de o acelerar e harmonizar. Esta estrutura de pensamento, radicalmente oposta ao que vamos vivendo nos nossos dias, em que os velhos são mesmo olhados e tratados como trapos, ser ve de base ao enredo que esta autora francesa nos deposita diante dos olhos – aqui, numa cidade que pura e simplesmente excluiu os velhos edifícios, as igrejas, os jardins, a vida começa realmente bem depois dos 50, uma vez que o poder, os mais altos lugares nas estruturas empresariais, as boas casas e os excelentes empregos só ficam disponíveis quando se atinge os escalões providos de sufixo. Que é como quem diz, o dos sexagenários, o dos septuagenários e por aí fora.
Este modelo de organização aparece sublinhado em pormenores a que se aplica a ideia do “requinte de malvadez”. Por exemplo, na circunstância de os homens maduros, aqueles que podem es- colher, desdenharem a companhia de mulheres jovens, ao ponto de os pais destas, desejosos de as encaminhar, estarem dispostos a contrapartidas para conseguir que os “veteranos” as tolerem. Depois, há uma constatação: os semabrigo são exclusivamente jovens, impedidos de lutar, apenas pelo desprezo que a juventude obtém junto de quem manda, por uma existência digna e olhados como párias. Fundamental acaba por ser o papel daquilo a que, noutro quadrante, chamaríamos “centros estéticos”: aquilo que aí se busca, com a mesma sofreguidão cega, com o mesmo afã de intolerância que aqui nos leva a pagar a peso de ouro o preço da “juventude” ( e estamos sempre a falar de aspeto, de visual, de imagem), é exatamente o oposto. As injeções, as cirurgias, os solários, os tratamentos visam acelerar o envelhecimento, provocando- o de forma precoce, em vez de aguardar a sua chegada pelo processo normal. Cada ruga conquistada é uma vitória festejada. Louras, ruivas e morenas pintam o cabelo de grisalho, invertendo a direção mas mantendo a supremacia da ilusão.
É neste cenário que a autora nos leva a descobrir Thalia, filha de um dos principais responsáveis pelas pesquisas na arte do envelhecimento – e rico, proporcionalmente ao êxito obtido. O azar bate à porta deste dominador ancião quando ele insiste em descobrir um noivo já entradote ( ou seja: já no apogeu, de acordo com a lógica) para a jovem. O azar bate- lhe à porta quando Thalia se apaixona por Lois, o que a conduz primeiro à curiosidade intelectual sobre o passado, e depois à rebelião con- tra o destino que tentavam traçar- lhe. Munida de um cartão de acesso ( por norma só concedido aos cidadãos acima dos 40 anos) à biblioteca em que predominam os livros digitalizados, a rapariga vai acabar por descobrir um velho volume, escrito por uma tal Laura Franck, que documenta o processo de exclusão a que foi subme tida… por ter perdido a juventude. Assim se compreende como, em perigosos jogos de opostos, se passou de uma ditadura para outra: “Através do seu testemunho, descobri o mundo antigo, aquele que tentam esconder- nos, talvez por ser a imagem invertida do nosso, e que, mesmo tendo a nossa sociedade evoluído, e sendo hoje a maturidade e a experiência valorizadas e respeitadas, os excessos acabam por se renovar. A loucura dos homens e a sua vontade de controlar tudo repetem- se como a vida não passasse de um eterno reinício.”
O livro para onde deve, sem exageros descabidos nem prolongamentos bocejantes. Chega a dar- se ao luxo de um final feliz. Tal como podem suspeitar os mais atentos, Valérie Clò está agora em plena “meia- idade”. Por outras palavras, nem de um lado nem do outro. Dá jeito.