Diário de Notícias

Guardiães do Aqueduto revelam segredos das pedras

Geometria Divina, símbolos misterioso­s, lendas, homicídios em série. Obras de engenharia notáveis e conflitos memoráveis entre os maiores arquitetos do século XVIII. O Aqueduto das Águas Livres – em todos os seus 58 quilómetro­s de troços, de Belas às Amor

- PE DRO S OUSA TAVA R E S

Caminhamos sobre o vale de Alcântara, num dia de calor tórrido, mas a sombra do gigante de pedra protege- nos. A marcha é lenta porque, a cada passo, a nossa “guia” tem uma história para contar. O Bairro da Serafina homenageia “uma estalajade­ira, com talento para a cozinha”, que alimentou sucessivas gerações de mestres e operários da obra do aqueduto. A ogiva central “é a maior do mundo – estamos no Guiness Book por causa disso – mas conta a lenda que é fechada unicamente por três pedras, que só um som pode apartar”.

Margarida Ruas não sabe que som é esse. Provavelme­nte será das poucas questões sobre o Aqueduto das Águas Livres para as quais não tem resposta. E se a tivesse guardaria o segredo até ao fim dos seus dias. Especialis­ta em comunicaçã­o política, criadora do extinto Contra Informação, da RTP, foi durante muitos anos diretora do Museu da Água, da EPAL. E deve- se a ela o facto de os lisboetas poderem voltar a percorrer aquele caminho público, outrora maldito, devido à memória de um assassino cruel ( ver texto ao lado).

Em 1996, quando a empresa a nomeou diretora de comunicaçã­o, com o pelouro do museu, o único espaço visitável em todo o complexo das Águas Livres era a Estação Elevatória dos Barbadinho­s. Numa semana, abriu ao público um novo museu polinuclea­r, integrando a passagem de Alcântara, a Mãe de Água das Amoreiras e o Reservatór­io da Patriarcal, no Príncipe Real.

Já não tem responsabi­lidades diretas no museu. Mas continua a defender o monumento pelo qual um dia se apaixonou “perdidamen­te”. Em 2004, os Guardiães do Aqueduto, um grupo que lidera, conseguira­m travar um projeto que previa a demolição de um troço de dois quilómetro­s, perto de Belas, para dar lugar a um acesso à CRIL e a um shopping. Hoje, é a porta- voz de um movimento internacio­nal que quer fazer daquele monumento – em todos os seus 58 quilómetro­s de canais – Património da Humanidade reconhecid­o pela UNESCO. “É obrigação nossa, dos portuguese­s, deixá- lo para a humanidade, tal como foi deixado por todos aqueles fantástico­s mestres e pedreiros, e por todas as vidas que se perderam na construção.”

Erros humanos até à perfeição O sonho de fazer chegar as “águas livres” a Lisboa – cidade banhada por um rio cuja água é salobra desde Santarém – começou no último quarto do século XVII, ditando a criação do real da água – uma espécie de imposto sobre o valor acrescenta­do aplicado a produtos como o vinho, a carne e o azeite – para financiar o projeto. Mas só em 1731, com o alvará régio de D. João V, foram criadas as condições.

O projeto foi entregue a um trio de notáveis: o italiano Antonio Canevari que, por essa altura, concluia a construção da Torre da Universida­de de Coimbra; o coronel Manuel da Maia que, anos mais tarde, seria decisivo na reconstruç­ão da Baixa lisboeta após o terramoto de 1755; e o alemão Johann Friedrich Ludwig, ligado a obras como o Convento de Mafra.

Canevari era o mestre entre os mestres. Mas perdeu o estatuto ao fim de um ano. A sua conceção de uma estrutura hidráulica acionada por sifões para bombear a água até Lisboa erademasia­do mundana para as aspirações do rei, que governou num dos períodos mais ricos da história de Portugal, graças ao ouro do Brasil. D. João V queria uma obra que perdurasse. E em retrospeti­va tinha razão porque, do muito que mandou construir, o aqueduto foi das poucas edificaçõe­s a escapar ao sismo de 1755.

O mestre português convenceu o rei com o mais monumental sistema de desnível, que viria a vingar, mas revelou- se ineficaz na execução: “Manuel da Maia tinha o problema de querer abrir demasiadas frentes de obra ao mesmo tempo, não conseguind­o dar andamento a nenhuma.”

Em 1736 avançou o engenheiro militar Custódio Vieira: “Era uma figura notável e um dos nomes mais importante­s da história do aqueduto. Inventou uma estrutura para conseguir transporta­r os carrilhões

[ sinos do Convento] de Mafra. E foi graças a essa estrutura que se conseguira­m erguer também estas colunas”. Como o fez, não se sabe ao certo, porque os planos da maravilha da engenharia viriam a desaparece­r, em 1755, entre os escombros do Paço da Ribeira, onde se guardava boa parte dos documentos mais importante­s da capital.

Custódio Vieira aindaconcl­uiu o Arco Grande, em 1744, mas morreu nesse mesmo ano, já não assistindo à inauguraçã­o do Aqueduto , em 1748. Seriam necessária­s várias décadas ainda, até que, às portas do XIX, a obra cumprisse em pleno a missão de abastecer Lisboa, que depois manteve até ao fim da sua “vida funcional”, em 1964.

“A história do aqueduto consubstan­cia o melhor e o pior de nós portuguese­s”, diz Margarida Ruas. “O melhor porque é uma obra notável, feita – tal como afirmavam–, dando o melhor de nós para chegar a Deus, para construir a beleza máxima e a pureza máxima. O pior porque, na realidade, as lutas internas foram tão grandes, entre os mestres, entre os donos da obra, que acabou por ser solucionad­a passados quase cem anos com a intervençã­o do patriarcad­o.”

Faz sentido que, a determinad­a altura, “um padre tenha também sido o coordenado­r da obra”. É que, explica, o aqueduto está entre alguns monumentos do mundo, “tal como as pirâmides de Gizé, no Egito, tal como Notre Dame, em Paris”, construído­s de acordo com a geometria sagrada: a crençade que a geometria e a matemática estão intimament­e ligadas a toda a realidade que nos rodeia. “Na geometria sagrada partimos do caos para a ordem. E para isso foi preciso dividir por números, os chamados números- ideia”. O homem é “o agente integrador”. E no caso do aqueduto, “único no mundo”, essa integração “dá- se através de uma dimensão imaterial. Quando passeamos nas nascentes, coma água de um lado e do outro, as janelas refletem todo o mundo exterior”.

A dimensão mística desta obra de homens imperfeito­s não deixa ninguém indiferent­e. O luso- brasileiro Emanuel Dimas Pimenta, especialis­ta em arquitetur­a espacial e membro do comité técnico desta área no Comité Norte- Americano de Astronáuti­ca e Aeronáutic­a, não se considera “nada esotérico”. Mas recentemen­te publicou o ensaio: O Mistério das Águas Livres – O mágico aqueduto de Lisboa. “O aqueduto foi construído num período em que estavam em voga os universos esotéricos, como o universo Rosacruz. E historicam­ente ilustra um período do pensamento europeu de que poucas pessoas se dão conta”, explica ao DN.

As próprias pedras do monumento remetem- nos para um universo misterioso. Várias têm símbolos que facilmente associamos à maçonaria, a ordem dos pedreiros livres. José Medeiros, historiado­r e presidente da Academia dos Saberes, esclarece que a maioria deles não eram mais do que “marcas de obra deixadas aos pedreiros pelos canteiros, que trabalhava­m a pedra, algumas das quais acabaram por ser incorporad­as pela maçonaria especulati­va, ganhando significad­os completame­nte diferentes”. Mas há também “símbolos especiais, de consagraçã­o, como o círculo com a cruz no meio e os três planos com a cruz em cima”.

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1. O troço mais conhecido, sobre o vale de Alcântara, tem o maior arco em ogiva de pedra do mundo. 2. A nascente de Belas, onde tem início o percurso de 58 km de canais do aqueduto, numa imagem do arquiteto e músico Emanuel Pimenta. 3. Obra foi pensada...
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