O beijo entre uma sérvia e um croata que a guerra civil adiou
Muitos aperceberam- se de que ela estava a chegar. Graffiti carregados de mensagens étnicas começaram a aparecer em edifícios por toda a cidade. Os jornais locais publicaram as localizações dos abrigos contra bombas. Um colega disse- me para não dormir no meu quarto porque este ficava em frente ao quartel militar.
Não liguei a esses avisos, tal como ignorei todos os outros sinais da desgraça que se aproximava. Na minha cabeça de 12 anos, a nossa cidade de Mostar, na Bósnia e Herzegovina, era demasiado bonita e as pessoas demasiado boas umas para as outras para que houvesse ali uma guerra civil. Além disso, aquela primavera trazia a promessa de ser a melhor época da minha vida: eu estava feliz e apaixonada pela primeira vez.
Tinha reparado em Marko na escola e os seus olhos maliciosos e o seu sorriso brincalhão tinham- me atraído. Uma tarde, ao voltar para casa após uma aula de piano, vi- o a descer a colina no seu skate. Parou quase em cima de mim. Não me lembro de termos falado muito. Limitámo- nos a ficar parados e a sorrir. Mas não foi preciso mais nada para selar o acordo do nosso afeto mútuo e tornámo- nos inseparáveis.
Marko estava no quinto ano e eu no sexto; ele era baixo e eu era alta; ele era croata e eu era sérvia. Em breve, os nossos grupos étnicos encontrar- se- iam em lados opostos de uma sangrenta guerra civil. Mas, naquele momento, nada disso i mportava. O que importava era como sabia bem ser reconhecida por ele, participar dos seus segredos e brincadeiras, partilhar amigos e ini- migos, experimentar as mesmas aventuras.
Um dia, decidimos em grupo escalar um prédio abandonado e saltar do telhado plano. Eu estava junto à borda, 3,5 metros acima do chão com o coração acelerado, quando Marko surgiu a meu lado.
“Você é a rapariga mais corajosa que eu conheço”, sussurrou.
Com aquelas palavras, o meu medo desapareceu e eu saltei.
No dia em que a guerra começou, Marko e eu voltámos juntos para casa. Tinha- nos sido dito para sairmos da escola algumas horas mais cedo, sem qualquer explicação. Enquanto caminhávamos, ele disse- me que, se a guerra eclodisse, a sua família iria para Split, na Croácia. Perguntou- me o que a minha família iria fazer. Eu não fazia ideia. A possibilidade nunca tinha sido discutida em minha casa; naquele momento, os meus planos iam só até às 18: 00, hora em que deveria encontrar- me com ele e com o resto dos nossos amigos. Com essa combinação separámo- nos.
Menos de meia hora depois, enquanto eu subia as escadas que levavam ao nosso apartamento, uma explosão sacudiu o edifício. A explosão atirou- me pelas escadas abaixo e o prédio ficou às escuras.
Ficaria a saber mais tarde que um trator com um reboque carregado de explosivos tinha sido detonado na rua entre o nosso prédio e o quartel do exército. A única coisa que eu sabia naquele momento era que tinha de encontrar a minha família.
Levantei- me e saí para a rua a cambalear. Havia pessoas a correr em todas as direções. Algumas choravam, outras sangravam. Corri para casa da minha tia, onde estava a minha mãe. Ela abraçou- me e manteve- me presa a ela durante muito tempo.
“Vai ficar tudo bem”, dizia uma e outra vez.
Eu não estava convencida. Os meus planos para essa tarde estavam obviamente arruinados e suspeitava que teria de passar algum tempo até poder fazer planos de novo. Tinha de entrar em contacto com Marko. Tinha de lhe dizer que estava bem. Que nós estávamos bem.
Naquela noite, depois de a minha família se ter instalado a ver televisão, esgueirei- me furtivamente para o corredor para usar o telefone. Marquei o número, apavorada por ter de falar ou por ter de explicar para quem estava a ligar. O pai de Marko respondeu. Quase a desmaiar de ansiedade perguntei por Marko.
Não sei o que esperava ouvir dele. Talvez que o que estava a acontecer lá fora não tinha qualquer influência sobre nós. Nenhuma guerra civil ou disputa étnica poderia arruinar o que nós tínhamos. No mínimo, eu pensei que ele iria perguntar se eu estava bem.
Não o fez. Mal disse uma palavra. Trocámos algumas sílabas balbuciantes e depois desliguei.
No dia seguinte ficámos a saber que a minha casa de infância tinha desaparecido, tinha ficado destruída na explosão. Duas semanas depois, o meu irmão, os meus primos e eu fomos enviados para outra cidade.
Do nosso exílio escrevi a Marko longas cartas que nunca chegaram a ser enviadas, nas quais descrevia a raiva, a tristeza e o deslocamento que sentia. Algumas semanas mais tarde, quando se tornou claro para os meus pais que o que estava acontecendo em Mostar e à sua volta não era uma disputa sem importância, mas uma guerra de pleno direito, eles decidiram pegar no que era mais importante – o meu irmão e eu – e partir definitivamente.
Estabelecemo- nos em Belgrado, na Sérvia. Quando o novo ano escolar começou vivíamos num apartamento minúsculo, num sótão com paredes tão finas que conseguíamos ouvir cada palavra das conversas dos nossos vizinhos. Sempre que abria a boca para falar numa loja ou num autocarro via que as pessoas me rotulavam como refugiada.
Mesmo assim, uma tarde, apenas alguns meses depois de termos deixado Mostar, um rapaz da minha nova escola pediu- me para me acompanhar até casa. Não falámos muito enquanto caminhávamos mas, em frente ao meu prédio, ele inclinou- se e pressionou a boca dele contra a minha. A sua língua parecia um peixe encalhado, viscoso e a contorcer- se.
O nome dele também era Marko e aquele foi o meu primeiro beijo. Mal ele saiu, eu limpei a boca, sen-
tindo- me enganada. O amor tinha- me sido roubado e era aquilo que eu recebia em troca?
Durante anos continuei a pensar no meu Marko original e essa memória tornou- se sinónimo de inocência perdida e da perfeição nunca mais alcançável. Aqueles breves dias de felicidade brilharam através da tragédia que se seguiu. Quando comecei a namorar dizia aos rapazes, na brincadeira, que tinha aquela relação inacabada e não me podia comprometer totalmente.
No entanto, nas poucas vezes que voltei à minha cidade natal depois da guerra não me atrevi a procurar Marko. Pensei em fazê- lo e até sabia como entrar em contacto com ele através de um amigo da sua irmã, mas decidi sempre não o fazer.
E se ele nem sequer se lembrasse de mim? E se aqueles anos perdidos tivessem apagado tudo o que tínhamos partilhado? E se o facto de eu ser sérvia e ele croata fosse uma barreira maior agora do que quando éramos crianças?
Acima de tudo, porém, eu temia que nada tivesse restado do menino de olhos brilhantes que me seguiu da escola até casa em cima de um skate, que me perseguiu pelas escadas em caracol e meteu bicarbonato de sódio numa garrafa de CocaCola para me impressionar.
Arquivei assim as minhas memórias de Marko. Então, certa manhã, 16 anos depois de fugir da minha cidade natal, abri o meu e- mail em casa, em San Jose, na Califórnia, e encontrei o nome de Marko na caixa de entrada. A sua mensagem dizia: “Se fores a Nikolina de Mostar, então eu sou o teu namorado desde o quinto ano. Por favor, responde- me, para que possamos descobrir o que fazer.”
Aquelas duas linhas foram tudo o que era preciso para dissipar os meus receios. Marko ainda era o menino brincalhão que eu tinha amado.
Passámos as semanas seguintes a corresponder- nos febrilmente, a dizermos um ao outro tudo o que nos lembrávamos do nosso romance de infância. Algumas das minhas memórias haviam desaparecido. Outras estavam tão vivas que eu temia tê- las inventado, mas ele lembrava- se de muitas das mesmas coisas, apenas com as diferenças suficientes para tornar as minhas próprias lembranças ainda mais reais.
Ele também me disse algumas coisas que eu não sabia, como o quanto tinha ficado obcecado com o desejo de me beijar. Tinha havido uma festa no seu apartamento, da qual ele não se lembrava de nada porque, depois de não ter consegui- do beijar- me, provavelmente reprimiu a memória completamente. Disse- me também que se tinha martirizado durante anos por não ter falado mais quando eu liguei.
Passaram alguns anos antes de eu conseguir voltar a Mostar. Quando o fiz, Marko e eu encontrámo- nos no local do costume, na base da colina onde ele se tinha aproximado de mim no seu skate pela primeira vez.
Éramos dois estranhos. Não nos teríamos reconhecido um ao outro na rua. No entanto, compreendíamos coisas um sobre o outro que mais ninguém sabia ou poderia compreender. Tal como da primeira vez, ficámos muito tempo apenas a sorrir.
Ao contrário dos meus outros amigos croatas, que se recusavam a atravessar para o que era agora o lado muçulmano da cidade, Marko parecia feliz por estar ali. Ele liderou o caminho da nossa escola para a Cidade Velha, onde a ponte otomana com 400 anos tinha sido feita em pedaços durante a guerra. A partir do terraço do último piso, tínhamos a vista perfeita da ponte iluminada em toda sua glória reconstruída.
Acompanhados por vinho branco, Marko e eu conversámos durante várias horas, contando a nossa juventude, o nosso sentimento comum de deslocados e os muitos atos de infidelidades cometidas um contra o outro durante as quase duas décadas da nossa separação.
Tal como a ponte, as nossas vidas tinha sido desfeitas e, em seguida, reconstruídas de novo. Ainda estávamos a juntar peças, só que agora tínhamos menos uma peça para procurar.
Com um resto de vinho ainda no fundo dos copos, Marko e eu demos as mãos, aproximámo- nos e beijámo- nos. Naquele momento, foi como se nada tivesse sido perdido.