Diário de Notícias

O ministro das Finanças merece uma ópera? Sim, se for morto num duelo

Na Broadway, a vida de um político de há dois séculos faz sucesso. Mas há quem queira tirá- lo da nota de dez dólares

- L E ONÍ DI O PAU LO F E R R E I R A

“Alexander Hamilton durou 31 horas depois de ter sido alvejado por Aaron Burr”, escreveu Willard Sterne Randall, um dos biógrafos do homem que foi o primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos, equivalent­e ao nosso ministro das Finanças. O duelo fatal aconteceu na manhã de uma quinta- feira, 11 de julho de 1804, e o adversário de Hamilton era um velho inimigo pessoal e político e, acrescente- se, também vice- presidente americano. Após longa agonia, morria assim em Nova Iorque um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, figura com uma história tão fascinante que estes dias esgotam- se os bilhetes na Broadway para ver um espetáculo dedicado à sua vida.

“Como é que um bastardo, filho de uma prostituta e de um escocês, largado num canto esquecido das Caraíbas, pela providênci­a empobrecid­o até à miséria, pode crescer e tornar- se um herói e um eru dito?”, lança o rap de abertura de Hamil- ton’s, que a Economist descreve como “ópera hip hop” e que Rebbeca Mead, da New Yorker, após assistir ao espetáculo no Public Theatre, diz misturar “R& B, jazz, pop e o estilo coral típico da Broadway”. Lin- Manuel Miranda, compositor e letrista de origem porto- riquenha, não podia ter encontrado melhor personagem. Aliás, ele próprio sobe a palco para interpreta­r Hamilton.

É assim tão surpreende­nte a vida de Hamilton como o modo como morre? Todos os historiado­res concordam, desde Willard Sterne Randall até Ron Chernow, cujo volume de 800 páginas sobre o político de finais do século XVIII/ inícios do XIX Miranda leu numas férias à beira- piscina no México. E tirando certa liberdade criativa, não foge à verdade a letra do rap de abertura, cantado por Burr. É que nem o ano de nascimento de Hamilton se sabe bem: 1755, talvez 1757. De certeza, o local foi a ilha de Nevis, que com Saint Kitts forma um país que só em 1983 deixou de ser colónia britânica.

O pai de Hamilton, um escocês com origens nobres, terá fugido de casa para a mãe, Rachel, não ser acusada de bigamia, pois era casada com outro homem. Ainda criança, Hamilton viu a mãe morrer, deixando- o órfão. Foi forçado a trabalhar desde muito jovem, mesmo que alguns protetores vissem nele um adolescent­e inteligent­e, devorador de livros e o ajudassem. Assim se percebe que tenha partido para Nova Iorque, para estudar no King’s College, hoje a Columbia University. E chega no preciso momento em que as 13 colónias entram em rutura com Jorge III, com a Guerra da Independên­cia a adivinhar- se.

O jovem Alexander junta- se em 1775 a uma milícia nova- iorquina que enfrenta já os casacas- vermelhas, apesar de faltar um ano para a célebre Declaração de Independên­cia redigida por Thomas Jefferson, político que a história virá a transforma­r num dos seus grandes rivais.

Durante a Guerra da Independên­cia, Hamilton torna- se o braço direito de George Washington, o fazendeiro da Virginia que comanda as tropas americanas. E distingue- se no teatro de guerra, com desta- que para a Batalha de York town, em julho de 1781, que acaba de vez com os planos do monarca britânico para recuperar o controlo das 13 colónias rebeldes.

Foi a ler estas façanhas que LinManuel Miranda se apaixonou pela figura de Hamilton. E em maio de 2009, conta a New Yorker, teve a oportunida­de para transforma­r em arte a história do órfão vindo das Caraíbas quando Barack Obama, recém- chegado à Casa Branca, o convidou para ser um dos autores numa noite dedicada a celebrar a chamada “American Experience”.

Talvez o primeiro presidente afroame ricano, que gostara do mu sical In The Heights, esperasse que Miranda, como fil ho de porto- r i quenhos, abordasse a experiênci­a dos latino- americanos, mas a proposta feita foi um rap sobre Hamilton. E foi aceite. Na noite do espetáculo, Miranda, amante de livros, apareceu c om um exemplar de Dreams from my Father, a autobiogra­fia de Obama, para o presidente assinar. E da música inicial, nasceria seis anos depois a ópera, primeiro exibida off Broadway.

Agora em exibição no Richard Rodgers Theater, já na Broadway, Hamilton’s teve na assistênci­a o presidente. Mas Obama, que veio assistir ao espetáculo em meados de julho, não viu Miranda em palco e sim Javier Muñoz, o ator substituto na personagem de Hamilton. Segundo contou o NewYork Times, foi apenas um acaso, com a presença do presi- dente – numa matinée de sábado – a coincidir com uma das sessões em que o compositor- letrista- ator tinha decidido sentar- se na plateia e estudar o modo como o espetáculo corria. Não fosse alguém pensar que Miranda estava em protesto contra os projetos para retirar o rosto do seu herói das notas de dez dólares para dar lugar a uma figura feminina da história americana.

Pois é, mesmo celebrado numa ópera, Hamilton corre o risco de ser apagado das notas. O que é de extrema injustiça, dizem várias vozes, como Ben Bernanke, que até ao ano passado foi presidente da Reserva Federal, o equivalent­e ao Banco Central dos Estados Unidos. É que Hamilton foi decisivo na criação do sistema financeiro americano. Bernanke vai ao ponto de suger i r que s e re t i re a nt e s Andrew Jackson das notas de 20, por ser um presidente polémico e com opinião pouco favorável ao banco central. Outra hipótese, acrescenta Bernanke, seria ter duas versões das notas de dez dólares, uma com a figura feminina ( ainda por decidir) e a outra mantendo Hamilton.

Alexander foi secretário do Tesouro quando George Washington se tornou o primeiro presidente dos Estados Unidos, em 1789. Antes tinha- se destacado por defender um poder central forte em detrimento dos direitos dos estados e é um dos autores dos Federalist Papers, textos essenciais para a interpreta­ção da Constituiç­ão americana. Essa visão centralist­a, e também a defesa de boas relações com a Grã- Bretanha, fê- lo entrar em choque com Jefferson, favorável ao federalism­o soft e pró- francês. Na ópera, Miranda inclui mesmo um duelo de rap entre os dois homens.

Jefferson acabará também por estar ligado à morte de Hamilton, pois es te ajudou a desempatar a eleição pre sidencial de 1800 em desfavor de Burr. Apesar das divergênci­as políticas com o autor da Declaração de In - d e p e n d ê n c i a , H a - milton tudo fez para o eleger presidente em detrimento do rival, que achava malformado.

Burr ficou vice ( eram as regras da época) mas nunca perdoou Hamilton e procurou o pretexto para se dizer ofendido e desafiá- lo a duelar. Tudo desaconsel­hava Hamilton a aceitar: um escândalo amoroso exposto quase o levara a um duelo com James Monroe, que viria a ser presidente; e o filho Philip morrera três anos antes também num duelo na margem do Hudson, no lado de New Jersey. Burr disparou e acertou, Hamilton falhou. A 12 de julho de 1804 morria o homem cuja vida vale uma ópera, mas cujo distante sucessor no Tesouro, Jack Lew, quer retirar da nota de dez dólares. Alexander Hamilton, nascido nas Caraíbas, é um dos Pais Fundadores

dos Estados Unidos

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