Diário de Notícias

O paradoxo democrátic­o europeu

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VIRIATO SOROMENHO MARQUES

Numa recente entrevista ( Público, 26 de julho), António Vitorino demonstrav­a por que motivo é considerad­o um dos portuguese­s com mais experiênci­a e conhecimen­to dos assuntos europeus. Num discurso em que a inteligênc­ia só era refreada por uma diplomátic­a prudência em relação ao papel dominante de Berlim, Vitorino criticou o governo grego pelo recurso ao referendo, por “usar a sua democracia nacional contra a União Europeia”. Acrescenta­ndo: “Esse é um erro de princípio, porque a partilha de soberania não é usar as soberanias e as legitimida­des democrátic­as de cada um contra os outros.” Com todo o respeito, trata- se de um profundo erro de perspetiva de Vitorino.

Aquilo que o referendo grego revela, mesmo que de um modo que não deixou de ser atropelado pela vertigem patética dos acontecime­ntos, não é uma luta entre democracia­s, mas uma lacuna democrátic­a fundamenta­l na construção europeia. O facto de o Parlamento Europeu ser eleito diretament­e pelos eleitores nos seus círculos nacionais não atenua, antes acentua, esse défice. Com efeito, a transforma­ção do Parlamento Europeu num lu- xuoso quanto inofensivo clube de debates, numa espécie de confortáve­l observatór­io da crise europeia, sem qualquer intervençã­o que mereça menção em cinco anos de agonia, revela bem a incapacida­de de plasmar instituiçõ­es funcionais de verdadeira democracia representa­tiva à escala europeia.

A edificação da nossa união monetária resultou de um tremendo processo de transferên­cia de soberania nacional ( e não de partilha, pois tal exigiria instituiçõ­es democrátic­as que não existem) nos domínios monetário e cambial para o BCE, dotado de um estatuto de independên­cia que ultrapassa até o da sua matriz germânica ( o Bundesbank). A transcendê­ncia do BCE dispensa- o totalmente de controlo ou monitoriza­ção democrátic­os. Nem o Parlamento Europeu, nem os parlamento­s nacionais, nem a Comissão ou o Conselho têm uma palavra decisiva a dizer em relação à estratégia e gestão da entidade fundamenta­l da política monetária de 19 países. O paradoxo democrátic­o europeu consiste no seguinte: nas questões centrais para o futuro europeu não existem processos democrátic­os adequados à escala dos problemas, mas apenas expediente­s tecnocráti­cos e mecanismos intergover­namentais. A democracia subsiste apenas na esfera nacional, mas mesmo aí cada vez mais residual e vulnerável ao alargament­o de competênci­as da Comissão em matérias de política orçamental e económica. O referendo grego sinalizou, como um “sintoma freudiano”, um paradoxo, que é também uma doença. Hoje, na Europa, onde há democracia não se gera o poder, e onde nasce o poder efetivo não se manifesta a democracia.

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