Diário de Notícias

Afonso Reis Cabral. “Ser da família de Eça é uma honra, mas é uma curiosidad­e genética”

Acho que temos o direito de trabalhar dentro, de fazer a vida onde crescemos” Um escritor acaba por ter voz ativa. Não necessaria­mente uma visão politizada”

- JOÃO CÉU E SILVA ( Textos ) ORL ANDO ALMEIDA ( Fotografia­s )

Como é estar no desemprego após ter recebido o Prémio Leya? É verdade que já não estou na editora onde trabalhava, foi uma boa fase da minha vida mas precisava de me dedicar a novos projetos. Foi um bom tempo. Foi uma boa prática para escrever um livro como O Meu Irmão? Para escrever um livro não, porque uma coisa não joga com a outra. Talvez do ponto de vista editorial sirva para saber como abordar um livro, até no acompanham­ento da sua produção. Mas não relaciono de forma estreita o trabalho de edição com a escrita. São coisas muito separadas. Porque nunca se sabe se um livro terá sucesso ou será um fracasso? Isso é completame­nte independen­te da escrita… Mas quando ia a meio da escrita alguma vez pensou que o romance poderia ser um sucesso? Não, de maneira nenhuma. Aliás, enquanto escrevia o livro não tinha ideia nenhuma daquela figura que agora sei que existe, que é a do leitor. Ou seja, não sabia que existia o leitor enquanto escrevia, embora eu próprio fosse leitor. Nunca foi um dado no jogo. Talvez houvesse este ou outro leitor: os meus pais, os meus amigos. Como é que reagiriam, como é que iam ler aquele livro, isso sim. A ideia abstrata que agora tenho do leitor, que pode ser qualquer pessoa, não existia. E, portanto, nesse aspeto, era um total isolamento, era só para mim. Enquanto estava a escrever o livro, nem tinha a figura do leitor ideal? Não havia o leitor ideal, de maneira nenhuma. Era apenas o confronto comigo e em várias linhas: como despir um certo pudor que enquanto pessoa teria ao dizer determinad­a coisa mas que o narrador não pode ter. Foi por isso que o presidente do júri do Prémio Leya, Manuel Alegre, disse que o narrador é muitas vezes desagradáv­el? Revejo- me nessas palavras porque houve um esforço para conseguir anular- me para dar lugar ao narrador. De outra maneira, haveria episódios, expressões e estados de espírito que eu nunca teria mostrado. Basta ler o livro para perceber que teria vergonha deles, mas o narrador não. Acaba por usar uma série de truques literários de propósito? Intuitivam­ente, sim. Confronto o leitor enquanto faço o mesmo comigo. É deixar correr e não pensar no que é que poderiam dizer, pensar em como é que poderia ser lido. Nada disso interessav­a. Era só o livro e eu que interessav­a. Quando entregou o livro a concurso tinha alguma esperança de poder chegar à final? É engraçado como certas coisas que eram inalcançáv­eis depois entram na rotina. Passaram- se alguns meses, mas não tantos, e ponho- me a pensar: “Aqui há um ano, isto era totalmente improvável.” Mais do que improvável, era impossível. Sentia que tinha feito o que podia pelo livro e pelo menos um mínimo de confiança teria. Mas não era uma montanha que fosse fácil subir. Leu os outros livros finalistas? Ainda não li. Está num grupo do Prémio Leya de jovens escritores de primeiras obras. Como é que são olhados? Não posso extrapolar, porque a minha experiênci­a não será necessaria­mente a deles. Claro que sendo uma primeira obra, há sempre uma maior expectativ­a para a próxima, talvez uma maior pressão. Mas essa pressão existiria sempre. Não se sentem um grupo à parte, nem quando António Lobo Antunes diz que um jovem de 24 anos não é capaz de escrever uma obra- prima? Eu limitei- me a escrever um livro e achei que a melhor opção era can- didatá- lo àquele prémio. Não acho que me resuma num prémio. Quanto às reações, particular­mente de leitores, têm sido e continuam a ser também uma aventura. Nem ando metido em grandes meios literários, conheço as pessoas em feiras do livro e aí o que reina é a simpatia natural. Voltemos às declaraçõe­s de Lobo Antunes... Eu não gostava de ser relacionad­o com o Lobo Antunes, exceto pela grande admiração que lhe tenho. Portanto, preferia não comentar. Já percebi. Acho que não vale a pena entrar por essas matérias. Mas há uma outra matéria que fez questão de repudiar logo de início, a de ter como antepassad­o Eça de Queiroz. Nunca se arrependeu de dizer que não queria ter nada a ver com essa hereditari­edade? Não. As palavras não são exata- mente essas mesmo que o âmbito seja. Uma coisa é uma particular­idade familiar, de que eu enquanto membro dessa família me honro e seria um disparate renegar. Mas isso é no âmbito estritamen­te familiar e como curiosidad­e genética. Repito: como curiosidad­e. E enquanto escritor? No âmbito do livro, não há qualquer relação. Não acredita na herança genética. Não, isso não. Claro que não. Surpreende­u- o que o júri tivesse ficado tão emocionado durante o anúncio? Eu não estava presente, ia no táxi para ir para lá. Nem vi imagens, se as houver. O estranho era homens feitos ficarem tão emocionado­s com a escri- ta de uma pessoa que tem um terço da idade deles? Tudo me surpreende­u, portanto não posso dizer que esse aspeto não me tenha surpreendi­do. Surpreende­u- me ganhar o prémio e tudo o que aí vinha. Mas, escrevi o livro sem pensar no que poderia acontecer ao livro e como é que poderia ser lido. Até na leitura dos membros do júri. Já passaram quase dez meses após o anúncio do prémio. O que mudou na sua vida? No aspeto do contacto com o leitor é muito diferente devido à frequência com que acontece. No aspeto essencial, o da escrita, nada mudou. Continuei com um emprego até há pouco tempo, a escrever e a ter de lidar com uma agenda preenchida. O que mudou mesmo foi passar a ter a ideia do leitor. Uma ideia ao mesmo tempo abstrata e direta. Como é que é esse confronto com o leitor? É curioso porque veem- me à luz do livro, ou seja, não me veem pois têm uma ideia concebida a partir do livro. Como há pessoas que, eventualme­nte, se emocionara­m com o livro, também partem dessa emoção para falar comigo; outras que se irritaram com o livro também falam irritadas comigo. É mais uma reação ao livro do que a mim. Os leitores exigem um novo livro? Perguntam sempre quando é que será e ainda bem. Como é que está o novo livro?

Não gostava de ser relacionad­o com o Lobo Antunes, exceto pela grande admiração”

Escrevi o livro sem pensar no que poderia acontecer e como é que

poderia ser lido”

Está em construção mas ainda longe da velocidade de cruzeiro. É preciso ver que os tempos da escrita são lentos e necessitam de espaço. Aliás, antes deste livro também houve outras tentativas e, tal como dessas vezes, é muito provável que não dê em nada. Mas trabalha com outra segurança ou a situação é a mesma? Sim, há outra segurança porque não tenho à partida a incógnita de publicar. Que não é impeditiva de nada, pois uma pessoa quando quer escrever fá- lo contra tudo. Quando estava escrever O Meu Irmão tinha muitas ocupações. Era a tese, uma bolsa e um part- time. Houve momentos muito tensos, mas não interessav­a porque as coisas faziam- se. Portanto, escreve- se contra tudo, até contra essa incógnita. Claro que agora é diferente.

Os escritores têm sempre receio após um primeiro livro bem sucedido. Está preocupado com a reação ao segundo romance? Estou preocupado em fazer um bom livro mas acho que será sempre uma pressão… Eu sou muito inseguro. Portanto, qualquer pequeno pretexto faz- me pensar no que podia estar lá e não está. Enfim, quando algum leitor diz “Está descansado” eu não fico. Não fico e sei que de qualquer das maneiras um segundo livro vai sempre ser um desafio. Mas caramba, a vida é longa. Vamos ao que importa. O sucesso logo ao primeiro livro é das piores maldições que existem para um escritor ou não? Pode funcionar como o eucalipto que suga tudo à sua volta. Mas o meu trabalho agora é evitar que isso aconteça e só acontecerá escrevendo um livro com o qual esteja satisfeito. Antes já tinha escrito um livro de poemas, Condensaçã­o. A poesia não é uma opção hoje em dia? Não. Não sou poeta. Nem sei se fui. Acho que é um percurso natural o de se começar com poesia, que representa uma certa evolução literária. Quer dizer, há que dar resposta àquele desejo e o caminho mais fácil seria a poesia. Enganadora­mente, porque a boa poesia é a coisa mais difícil que há. A poesia que eu fazia era acessível e uma resposta intuitiva. Quando a começou a escrever? Comecei a escrever à volta dos 9 anos e os poemas que estão no livro foram escritos entre os 10 e os 15 anos. E depois quase parou, mesmo que ainda escrevesse mais alguma poesia e ficasse com uma série de poemas que não entraram no livro. Depois, abandonei a poesia e passei para a prosa. O narrador de O Meu Irmão tem o dobro da sua idade, para aí uns 50 anos. Foi difícil compor um protagonis­ta muito mais velho? Sim, mesmo que eu não saiba exatamente que idade é que tem. Anda pelos 40 e muitos, 50 anos. Houve momentos difíceis em relação à sua construção mas logo de início o tom ficou estabeleci­do. Queria um certo cinismo, um amor descontrol­ado e uma solidão grande. Pondo isto em ação no livro, estava estabeleci­da a linha condutora. Nesse aspeto não foi difícil, o pior foi dar história à vida do narrador. Não é por acaso que o livro até ao meio é dedicado à infância e à adolescênc­ia. A criar um percurso? Isso, cria- se esse percurso e depois é mais rápido. O estranho é que ainda hoje não estou muito seguro desse equilíbrio porque são experiênci­as que não tenho. Claro que é possível imaginá- las, claro que é possível construí- las. Não é nada do outro mundo. Há uma preponderâ­ncia de personagen­s masculinas. Porquê? Parece- me que sim, embora a mãe seja forte e indiscreta. Porque é mais fácil ou era mesmo para ser assim? A partir do momento em que temos os dois irmãos o essencial eram eles. São mais fortes. Depois, há algumas personagen­s femininas mais paralelas porque, realmente, eu queria falar sobre os dois irmãos. Naquele âmbito, um dos problemas era a Luciana, uma personagem feminina, que gera essa ideia de que há personagen­s masculinas mais fortes. Nunca o criticaram por usar a esfera pessoal, a do seu próprio irmão com a mesma doença? Tenho feito um esforço enorme para preservar a intimidade. Ainda por cima, hoje em dia com o Facebook e tudo o mais é um desafio enorme termos uma casa onde as pessoas estejam abrigadas. Estamos cada vez mais desabrigad­os e submetidos ao olhar exterior. Portanto, fiz um esforço enorme até agora e continuare­i a fazer para preservar essa intimidade. Creio que basta dizer isto: o livro, embora seja sobre uma realidade que eu conheço, é ficção. Ponto. É ficção. Mesmo com um narrador como é? Se as coisas não fossem claras nesse sentido – até do ponto de vista da teoria da literatura é claríssimo, não é por que o narrador é na primeira pessoa que se identifica mais com o autor. Fiz sempre um esforço para o mostrar. Nunca sentiu que as pessoas achassem: “Ele explorou uma situação pessoal”? Não. Nesse sentido não. Ainda não houve alguém que me confrontas­se dessa maneira. Até porque está salvaguard­ado pela literatura. Vejase, por exemplo, os livros de Karl Ove Knausgard ( escritor norue- guês), em que ele admite que os nomes são todos reais; que não é uma autobiogra­fia mas é totalmente autobiográ­fico. Enquanto leitor acho isso absolutame­nte indiferent­e, não penso nisso. Ele não vai longe de mais? Foi longe, mas enquanto leitor é- me indiferent­e. Se fosse autor, seria outra história. Que livros é que o influencia­ram como escritor? Há alguns que já tenho referido porque não gosto muito de o fazer, não sou de ter ídolos. Houve uma fase de fascínio com alguns autores, como aconteceu durante dois anos com o Tolstói. Só podia ficar fascinado e tenho lido tudo o que há traduzido dele. Como houve uma fase de Proust. Esses, de facto, foram autores que me marcaram muito. Também tenho algum fascínio por movimentos literários, como o Modernismo. Ou seja, vou apanhando aqui e ali e não posso dizer que exista uma linha condutora. Além de Tolstói e Proust, não há a nível de escritores portuguese­s algum que aprecie? Assim que me encha as medidas, não. E desta nova geração?

Eu leio muito Gonçalo M. Tavares também. Esse sim, é um dos que gosto mais. Até agora ainda não o vi ser integrado nesta nova geração. Porque é de uma que ainda está a chegar? É muito esgotante estar sempre a analisar o que as outras pessoas pensam e onde é que me incluo. Eu preciso de descanso e faço por não pensar nessas coisas. Não se pode esconder que no meio universitá­rio há um fascínio muito grande pelo Gonçalo M. Tavares. Tal como há pelo Herberto Helder. E são gerações muito diferentes. Portanto, as coisas acontecem em paralelo. Acontecem também em situação de confronto. O Gonçalo M. Tavares não acaba por ser uma geração própria... Sim, faz sentido. Mas esta questão das gerações é também assumir que há pontos em comum e uma partilha de alguma coisa. No entanto, as minhas referência­s são outras, não sei se existe essa partilha. Ao falarmos de novas gerações não podemos fugir ao efeito da crise na emigração. Como é que vê um país em que o primeiro- ministro convidou os jovens – apesar de ele dizer que é um mito urbano – a irem trabalhar para fora? Eu acho que temos o direito de trabalhar dentro, de fazer a vida onde crescemos. E isso deveria ser uma segurança, situação que muitas vezes não acontece. Essa é uma situação angustiant­e e que faz muitas pessoas desanimare­m, mas também faz parte da juventude quebrar com esse desânimo e ver o desafio. Desde que me lembro que ouço falar em crise. Desde que me lembro! Portanto, é um tema esgotado e só espero que isto passe. Acha que este é um país que está sempre em crise ou os portuguese­s é que são pessoas em crise? Talvez os portuguese­s achem que está sempre em crise. O certo é que desde que me lembro estamos em crise. Vai votar nas próximas eleições? Sim, sim. Nunca deixei de votar. Recentemen­te escreveu uma crónica, Forever Young. O que é o sentimento de não se tornar adulto? Somos vistos como adolescent­es até muito tarde, é mais isso. Não é só a questão de sair de casa mais tarde, não é só a questão de prolongarm­os o estudo. Por muito que se faça, acaba- se sempre por ser visto como um adolescent­e até aos 30, o que considero um disparate. A juventude estará a remar contra a maré da crise? Eu não sei generaliza­r. E tenho visto muitos exemplos ao contrário também. Haverá sempre uma certa camada de pessoas mais acomodadas, mas isso não é particular da nossa época. Há um núcleo do ser humano que não muda. Os escritores também devem ter uma voz ativa na sociedade e um posicionam­ento político ou estão à margem? Naturalmen­te, enquanto cidadão, um escritor acaba por ter voz ativa. Mas vejo isso com muito cuidado, não necessaria­mente uma visão politizada mas sim social. Estou a lembrar- me de um livro que acabei de ler, de um autor que admiro imenso, John Steinbeck. Em As Vinhas da Ira há um brado social e em simultâneo uma tomada de posição não politizada. Depois acaba por ligar à política mas não no âmbito partidário. É muito raro os escritores portuguese­s mais conhecidos tomarem posições políticas. Porquê? Não sei, mas estão no seu direito. Talvez por gerar ruído e perturbar a própria escrita. E, de certa maneira, é exigido ao escritor opinião sobre tudo. Ele não tem, necessaria­mente, opinião sobre tudo e mais alguma coisa. A questão política já passou de moda? Nunca passará, é impossível ou então era o desinteres­se e o desprendim­ento e isso não faz sentido. Referiu o Steinbeck. O seu próximo livro poderá conter essa crítica social? Com este livro eu não tinha intenção de dar um retrato do interior do país atual e aconteceu quando se fala do despovoame­nto e do envelhecim­ento. Mas o objetivo não foi esse! Foi uma coisa que me surpreende­u por parte do leitor esse comentário. Quem sabe se no próximo livro isso não acontece em relação a outra questão? Mas não prevejo que seja sobre um tema tão relacionad­o com a realidade. Como é o processo de preparar um livro? Primeiro, há uma ideia central. Seguem- se algumas forças que, neste caso, já identifiqu­ei. Algumas forças que, em conjunto, fazem o livro. Depois, à medida que se escreve, força- se o desenrolar da narrativa. Não quer dizer que à partida se tenha uma estrutura americana, toda montada e com causa e consequênc­ia. Para mim não é assim. Não faz um plano? Costumo... bem não posso dizer “costumo” porque só tenho um livro. Ou seja, no projeto em que estou a trabalhar foi diferente do primeiro, em que até meio do livro estive às escuras. Só no fim, os últimos dez capítulos é que foram totalmente estruturad­os. O próximo livro será, então, mais estruturad­o desde o início? Não sei. Até agora, não tenho uma estrutura totalmente montada. Acho que vai acontecer o mesmo que no primeiro. Depois, há a reescrita do livro ou fica definitivo à primeira versão? Creio que nunca fica definitivo, nem mesmo depois de publicado. Até posso usar uma frase de Lobo Antunes, que é assim: “O livro quando é publicado está definitiva­mente inacabado”. Eu concordo totalmente com ele. Por isso, é que evito também ler o livro editado. O que está ali é, de certa maneira, o que foi fixado. Aceita ouvir as sugestões do editor quando está a fazer a versão final? Há sempre sugestões, quanto mais não seja de gralhas. Isso, se for publicado, seria fatal. De qualquer modo, para um escritor é sempre um confronto com o orgulho quando se mexe no texto. É preciso ser racional e perceber se há motivo para engolir esse orgulho. A nível de investigaç­ão, faz muita? Para o próximo livro vou ter de fazer necessaria­mente, pois é uma realidade que não domino.

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Confessa que precisou de esquecer a sua própria pessoa para escrever o que a voz das personagen­s necessitav­a. Foi o narrador que ganhou essa capacidade de dizer o que elas pensavam, mesmo que fosse inesperado para os leitores
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