Documentário mostra o abismo negro da Coreia do Norte
É um filme que aposta em dar a ver imagens de um país que resiste ao próprio universo global das imagens
TESTEMUNHO De que falamos quando falamos da Coreia do Norte? A pergunta projeta- nos numa espécie de abismo negro, típico das angústias dos nossos tempos mediáticos. Que é como quem diz: não sabemos do que falamos porque não sabemos o que há para ver. Ou ainda: quando nos garantem que “tudo” pode ser imagem, a Coreia da Norte é o país que resiste às mais básicas formas de globalização, empurrando- nos para um imaginário carente de imagens.
Canções do Norte é um filme que tenta lidar com esse vazio. Foi produzido pelo investigador e ensaísta americano Haden Guest, responsável pelo arquivo fílmico da Universidade de Harvard, em associação com a empresa portuguesa Rosa Filmes. Recorde- se que a colaboração de Guest com a Rosa Filmes e, em particular, com o cineasta Joaquim Sapinho esteve na base no ciclo Harvard na Gulbenkian ( 2014), estruturado como uma série de “diálogos sobre o cinema português e o cinema do mundo”: Soon Mi-Yoo, realizadora de Canções do Norte, participou numa das sessões desse ciclo, sugestivamente intitulada “A memó-
Um testemunho apoiado nas imagens oficiais de propaganda ria acredita antes do conhecimento recordar”.
Deparamos, assim, com os reflexos da experiência singular de Soon Mi- Yoo: nascida na Coreia do Sul, o seu filme nasce de registos feitos durante três visitas à Coreia do Norte, cruzados com fragmentos de uma conversa com o seu pai, incidindo na separação dos dois países depois da II Guerra Mundial e nos respetivos efeitos psicológicos e políticos.
Canções do Norte preserva uma dimensão de testemunho com tanto de desconcertante como de fascinante. A energia desse testemunho envolve, no essencial, perversamente, as imagens geradas pela Coreia do Norte. Assim, Soon Mi- Yoo recolheu os mais variados registos filmados pe las instituições e estruturas de propaganda do país, aparentemente enquanto espectadora de TV ( isto porque as características técnicas das imagens apresentadas permitem perceber que a sua origem é televisiva). Através de reportagens, filmes e espetáculos de palco, descobrimos fenómenos singulares como os mecanismos de endeusamento do líder Kim Jong- il ou a aprendizagem pelas crianças de toda uma ideologia de consagração nacionalista. São imagens tanto mais fortes quanto foram sujeitas a um peculiar didatismo cinematográfico: a sua recontextualização. De facto, o simples efeito de distanciação favorecido pelas ambivalências da montagem cinematográfica faz que a propaganda seja revista como... imagem de propaganda. No limite, Canções do Norte consegue fazer- nos sentir que, além ( e através) da propaganda, há sempre gente viva, humana como nós. CANÇÕES DO NORTE