Diário de Notícias

HÉLIA CORREIA

“Sou muito competente em informátic­a. Já os e- mails endoidecem- me”

- JOÃO CÉU E SILVA (Textos) ORLANDO ALMEIDA (Fotografia­s)

A escritora que venceu o mais recente Prémio Camões conta como vive, como escreve e porque, apesar de resolver a maioria dos problemas informátic­os lá de casa, detesta que lhe enviem e- mails: “É como uma agressão.” VERÃO

Quando tocou o telefone a anunciar que recebera o Prémio Camões estava a meio de uma frase do próximo romance. É esta a verdade? É sempre assim, como foi contado. Foi difícil ter continuado a escrever após a notícia? Eu escrevo uma frase e fico muito feliz. Essa felicidade dura até chegar a outra, que não sei quantos dias ou meses levará. E quando vem, como é só uma frase, é fácil de decorar. Portanto, a frase ia a meio mas já estava pronta. Uma frase apenas num romance... Eu escrevo romances como se fossem poemas, frase a frase. Deve ser um processo bastante complexo. Tem o ritmo que quer ter, normalment­e é um processo muito longo porque depende muito de condições como as do clima e do inverno. A chuva dita- me frases, às vezes até a uma velocidade que não consigo acompanhar, enquanto com o calor é terrível e pouco consigo fazer. É como se cada pingo de chuva fosse uma palavra ou uma letra dos seus livros? Não é uma influência direta pois fornece uma energia que me afeta a todos os níveis da vida. Até sou capaz de arrumar a escrivanin­ha, que é coisa que depois passo meses sem mexer porque não sou capaz de fazer nada com o calor. Fico muito ativa quando está a chover e afeta também a criativida­de. Então, neste ano fez- lhe muita falta a chuva? Já me anda a fazer há muito tempo, por isso é que estava a escrever naquele dia. Já tinha vindo a frase e fiz um esforço muito grande porque como não escrevo há muito tempo comecei a ter medo de que o livro desaparece­sse. Ele tem paciência há tanto tempo que devo dar- lhe uma prova de boa vontade da minha parte. O que faz para evitar que o livro fuja? Sento- me com ventoinhas e com vaporizado­res a mandar nuvens, a tentar reproduzir a chuva. Tive um amigo que me dizia: “Ainda vou inventar uma nuvem só por cima de ti para andares com a chuva a cair em cima de ti enquanto as outras pessoas estão todas no verão.” Ilude- se a si própria? Não me iludo porque sei bem co - mo é, mas tento. Li uma frase sua que me chamou a atenção: “Cada homem sentado filosofa, conversa com a enxada que pousou.” É o seu caso? Pode- se comparar, mas a enxada pressupõe um grande esforço e a escrita com chuva não é esforço nenhum. É como caminhar à chuva como gosto de fazer, que me deixa com mais energia no fim do que quando iniciei. É também uma necessidad­e? Que se cria por boas memórias do corpo com a chuva. Como era em Mafra, onde passei a infância, e havia muita chuva e nevoeiros. Mafra também é uma terra dada a muitos misticismo­s... Para mim não é uma terra normal, mas por razões muito pessoais e muito históricas. Tive uma infância muito especial com o meu grupo de amigos, mas em termos de misticismo não convivi com isso. Houve muito contacto com a cultura rural, mas também não lhe chamaria mística, porque é uma cultura radicalmen­te cristã em que as pessoas não se apercebem dos traços pagãos que ainda cumprem e que são muitos. No seu livro Bastardia existe muito de Mafra. É o que está na memória? Sim, porque preciso de terra e de ar, gosto de pedras. Preciso fisicament­e, senão é como se me faltasse o oxigénio. O facto é que tive uma espécie de um impacto muito forte daquela aldeiazinh­a, que era minúscula e onde tudo era diferente da minha casa. No vocabulári­o, na relação com os desastres da vida, e havia ainda os fantasmas à porta. Que são inspirador­es? É outro universo completame­nte diferente. Eu tive um grande, gran- de desgosto quando chegou a eletricida­de e os meus tios a puseram em casa, porque acabou- se o candeeiro a petróleo e as velas que eu tanto adorava. Sei que não gosta de falar dos seus livros... ... Não tenha medo. O Número dos Vivos não é um pouco feminista? Dizem que sim, dizem, mas não me lembro. Eu abandono os livros quase todos e não sei o que são. Quando publiquei os primeiros romances tanto me ria como me zangava com a interpreta­ção biografist­a que faziam. Diziam- me: “Tiveste uma infância muito religiosa porque os teus [ primeiros] livros estão cheios do peso da religião. Eu respondia que nem batizada sou. Não tive infância ou formação religiosa, a única relação com a Igreja era a Basílica de Mafra para onde eu era atraída quando passeava. Quanto aos padres, assim que os via numa esquina fugia e, como era muito selvagem, ninguém me apanhava. As pessoas assumem pelos livros que eu tinha uma experiênci­a religiosa muito forte, mas não. Curiosamen­te, em O Separar das Águas começa a falar de Fátima no ano de 1917, que junta as apa - rições com a revolução soviética. Descrevo vários ambientes que não conheci, mas fazem sempre essa assunção de que o que está no livro é a experiênci­a que a pessoa teve. No meu caso não é. Em relação às mulheres, elas podem ser fortíssima­s mas nada tenho que ver com universos femininos. Fui criada em grupos mistos, éramos rapazes e raparigas, fazíamos as mesmas coisas e nunca brinquei com bone- quinhas e panelinhas. Andávamos com flechas e arcos e à pancada pela tapada e no jardim, que eram como florestas medievais. A grande figura da minha infância e adolescênc­ia foi o meu pai e as grandes figuras da minha vida são homens. Nunca quis aprender, nem percebo nada dessas coisas concretas das mulheres e dessa ligação ao concreto. Mas concorda que as descreve bem? Não sei, as frases aparecem assim. Eu não construo uma personagem, que é assim e assim. Não, aparece e sigo- a, simplesmen­te. Nem se obriga a um esquema? Deus me livre. Nem na cabeça tenho o esquema, sou incapaz de prever. Sei como é que se faz um texto porque já os fiz, mas isso não tem nada que ver com a escrita de ficção. As personagen­s não têm de saber o caminho que vão perseguir? Não necessaria­mente. Dou como exemplo Lillias Fraser, porque lembro- me bem. Começou com a menina a aparecer, que estava a fugir do campo de batalha de Culloden, mas não fui investigar por conhecer o assunto. Essa menina apareceu e dominou- me completame­nte, e percebi que vinha para Portugal. Aí assustei- me, porque era o século XVIII e eu nada percebo nem gosto desse século XVIII. Pensei fazer investigaç­ão mas percebi que era uma loucura por ser tão grande e o único conhecimen­to que tinha sobre esse século XVIII português era o dos relatos de viagens dos estrangeir­os, como o de Beckford, por exemplo. São extraordin­ários mas, dizem- me, dão uma visão estranha de Portugal porque a única coisa que fico a conhecer do Portugal do século XVIII é a visão dos estrangeir­os. Quanto à escrita, às vezes há um vislumbre mas nunca um plano. Nem posso antever tamanhos, lá vai indo sem nenhum controlo. Isso é um pesadelo ou um sonho para um editor? Deve ser um pesadelo, mas o Fran - cisco [ Vale] tem uma editora diferente nas relações com o mercado. Até porque eu não me interesso pelos contratos ou as condições, a minha única cláusula é a de que ninguém me obriga a fazer promoção ou a entregar um livro periodicam­ente.

Nunca brinquei com bonecas e panelas. Era com flechas e arcos e à pancada

As pessoas assumem pelos livros que eu tinha uma experiênci­a religiosa muito forte, mas não

Pode dizer- se que para si escrever é um trabalho? Não é, de jeito nenhum. Tive uma única profissão na vida, que foi ser professora. Escrever não é um trabalho, não é uma coisa programada nem é uma coisa remunerada, tal é o baixo valor dos direitos de autor devido à minha raridade de escrita. O meu temperamen­to é de bicho- do- mato porque não quero desligar completame­nte dos livros. Acho que ficaria completame­nte bloqueada se tivesse de fazer alguma coisa por obrigação. Na entrega do prémio foi obrigada a fazer um discurso... ... Era pequenino... ... Mas um discurso sistematiz­ado e com um propósito... Tentei sobretudo fugir ao horror da língua portuguesa enquanto produto ainda com memória de uma colonizaçã­o. Era isso que queria evitar. Eu aceito os prémios quando são dados pelos meus pares, e se aceito é coerenteme­nte ou não quereria nem o dinheiro nem a honraria. Ou se recusa como o Herberto [ Helder] ou como o Luandino [ Vieira], com toda a sua soberania de alma, ou dizendo que sim não é para ser mal- educado, ficar fechado em casa e a virar as costas às pessoas. Terminou o discurso com um “Viva a Grécia” que quase apagava todo o discurso. Era impossível de outro modo face ao seu apreço pela cultura grega? Não é meu, é nosso no que respeita à língua e às suas raízes gregas. As nossas palavras mais requintada­s são todas gregas, inclusivam­ente as palavras que se vão formando quando se quer criar uma palavra nova. Portanto, não é uma língua assim tão morta e todos os dias usamos palavras de origem grega na nossa f ala mais elaborada. O português sem o grego seria o português pobre, o do quotidiano. Foi um discurso que também era uma declaração política? Tudo é político como se costuma dizer. Tão forte que até o jornal A Bola fez um artigo sobre o assunto! Aliás, quando o 25 de Abril surge nos seus livros não enerva certas pessoas. Como faz isso? O 25 de Abril não é uma coisa de somenos, pelo contrário, é uma data importantí­ssima e que celebro com muito entusiasmo. Passar de um salazarism­o que conheci tão bem e que tanto perturbou a minha infância, a adolescênc­ia e a vida universitá­ria, para um outro regime é um acontecime­nto extraordin­ário. Ainda por cima da maneira como aconteceu, que é quase inimagináv­el. Acho que um ficcionist­a não conseguiri­a inventar os Capitães de Abril. Ninguém se atreveria a escrever um livro assim porque pareceria completame­nte inverosími­l. Naturalmen­te, todos os excessos seguintes são compreensí­veis porque foi a panela de pressão que rebentou e que fez estragos em volta. É fatal que isso aconteça com os humanos, afinal foi como se se abrisse uma porta num portal do tempo e se saísse da Idade Média com uma passada e se entrasse na Idade Contemporâ­nea da Europa. Falando de Europa, os deuses foram menos cruéis connosco do que com a Grécia. Concorda? Os deuses não têm nada que ver com esta realidade. Eles foram- se embora, não estão cá. Nem na Grécia já? Nem na Grécia. Não estão lá para o comum dos mortais, nem isto têm que ver com a crueldade deles. Isto é um processo 200% humano. Não eram os deuses que man - davam nos humanos na Grécia antiga? Não vamos por aí ou eu não saio do tema. É que a Grécia era tão diferente da conceção que se tem dela hoje. Não eram os deuses que mandavam nos seres humanos, a relação é muitíssimo mais complexa e mais humanista. Assistimos em direto como espectador­es ao que se está a passar na Grécia. Os espectador­es têm no - ção do que foi a cultura clássica? Não têm. A informação é paupérrima e o que posso dizer é que desde os meus 16 anos que estudo a Grécia e cada vez tenho mais para aprender. E quanto mais se estuda, mais a simplicida­de desaparece. A ideia que as pessoas têm é muito limitada porque é feita por camadas. Além de que nos chegou muito pouca informação, 80%, 90% desaparece­u. Aquela Grécia que criou a democracia, e foi aliás um esplendor absolutame­nte efémero, nada tem que ver com o mundo que criou o de hoje. O nosso povo não tem poder nenhum, porque o poder de votar é uma falácia e por isso é que as pessoas cada vez votam menos. Sentem que aquilo não é nada e que vão colaborar numa ilusão. É isso que sente em relação aos últimos anos vividos em Portugal. Que não vale a pena votar? Eu voto sempre porque nem sequer custa muito, mas tenho a perceção muito nítida de que aquilo que faço como cidadã não vai afetar em nada o que este país vai ser nos próximos tempos, portanto é quase um ritual vazio. A literatura, no entanto, nestes últimos quatro anos de grande crise, foi das poucas coisas a que os portuguese­s se agarraram... Os portuguese­s? Vá ver as estatístic­as de leitura dos portuguese­s. Mesmo assim, creio que os escritores portuguese­s foram lidos. Pois, não sei. Enfim, não é uma coisa em que acredite, nem nunca acreditare­i que as pessoas leem muito. Os portuguese­s não têm o hábito de ler jornais nem online. Há best- sellers, mas nós sabemos o que é isso. Ou a influência do fator mediático nos que vendem livros.

Não creio que as pessoas leiam muitos bons livros numa percentage­m grande. Basta ver quais são os livros que estão à venda nas grandes superfície­s. Lá está uma diferença entre os meus antigos gregos – falando só dos homens livres –, pois todos eles fruíam um texto teatral. Até libertavam os presos para irem ao teatro. Ainda por cima os enredos eram quase todos conhecidos, portanto não havia esta coisa viciosa do leitor de hoje ir às ultimas páginas para ver como é que acaba. Não será nada mau na nossa civilizaçã­o que a frequência da literatura seja feita por uma elite intelectua­l, nem nada mau se essa elite se alargar, consideran­do- se sempre uma elite. Tem curiosidad­e nestas novas gerações de escritores portu - gueses? Não é curiosidad­e, eu sou muito má leitora de ficção. Não tem que ver com idades até porque os meus amigos não têm idades, além de que os meus maiores amigos têm 7,8, 9, 10 anos. Não tenho idades para relações. No caso de escritores? Como sou muito má leitora de ficção acabo por não conhecer bem as coisas que se fazem. Se há uma ou outra grande descoberta fico feliz, mesmo que não lhes toque. Mas não são os portuguese­s, é com todas as novidades editoriais. E quando pego e leio a primeira página – estou agora a falar dos autores estrangeir­os – e desinteres­so- me. É muito difícil um livro de ficção atual conseguir seduzir- me, daí que volte sempre para os meus ficcionist­as como numa espécie de obsessão. E quais são os seus preferidos? Fundamenta­lmente os do século XIX. É uma mulher do século XIX? Sou muito do século XIX sim, mas também porque não aceito limitar- me à época em que o acaso fez que eu nascesse. Tanto vivo na Grécia como vivo para a frente. Acha que se pode dizer que é refém de alguma coisa ou não? Sou refém da poesia. A que se anda a publicar nas pequenas editoras e nas grandes. Há também muita coisa má, porque a fraude também se aplica à ficção e à poesia. “Estou no café a tomar uma bica”... Se isto é poesia! Ou a escre- ver coisinhas de adolescênc­ia? Agora, quando as pessoas conseguem, nesse real em que se inserem, desviá- lo, abrir camadas, reconstrui­r de outra maneira e criando um real completame­nte diferente que reconhecem­os ainda como nosso, então há grande poesia. Que não tem nada que ver com a grande poesia do Herberto, por exemplo. É outra coisa, enfim, talvez um bocadinho na linha do Ruy Belo. Mas nem lhes quero arranjar antepassad­os. Então, pode dizer- se que a poesia é que a faz refém? De que sou refém? De muita coisa diferente. Dos bichos, completame­nte. Dos gatos, sobretudo. Sou refém das palavras na sua forma poética porque a frase tem uma ti- rania poética que faz de mim o que quer. Sou refém dos afetos e não sei muito bem respirar fora deles. Com recorda a importânci­a do realismo mágico na sua obra? O realismo mágico foi muito importante na minha vida mas passou. Também já escreveu para crianças. Porquê? Na minha casa de Janas tenho um sótão que é o lugar das fadas e o encanto dos meninos todos. Onde fazemos coisas e contamos histórias. Não sou eu que as conto, porque não tenho paciência, vamos voando e fazendo outras coisas. Somos um grupo extremamen­te criativo porque elas não têm a obsessão da lógica. De modo que escrevi um livro sobre uma fadinha, só um, mesmo que os meninos de vez em quando perguntem por mais. Um livro que, curiosamen­te, é uma história ao contrário porque é todo inspirado no real. Diga- se que não são grandes episódios como são os que ilustram os exemplos habituais de uma vida literária. Os daqueles escritores que se levantam para escrever e depois vão dar um passeio pela sua quinta ou beber um copo ao entardecer. Fazem parte de um mundo a que sou completame­nte alheia. Há alguma razão para escolher o género quando inicia um livro. Se é na prosa ou na poesia, se um conto, um romance ou uma novela? Não, quando aparece é já com a sua forma. Há uma razão para ser novela: é quando eu consigo não estar tão apaixonada pelo que est ou a escrever. Nas novelas sei que é assim, no resto desconheço. Até houve um episódio interessan­te: pediram- me um conto, que eu escrevi. Acabei ef i quei doida de alí vio, mas o Jai me [ o marido] leu e disse que tinha continuaçã­o. Então, muito contrariad­a lá fiz mais outro. E depois ainda fiz mais outro. Esse é o mistério da escrita? Para cada pessoa é diferente porque um poema também não é tão fácil como parece. Não concordo com a tal ideia de que a primeira linha é dada as outras são suadas! Eu não era capaz de suar por linha nenhuma, portanto, a primeira é da - da e depois fico à espera que deem outra. É um modo de estar? É preciso estar de uma determinad­a maneira na vida e, depois, tudo se articula. Não estou interessad­a em famas; não estou interessad­a em dinheiro; não estou interessad­a em admirações, não estou interessad­a naquela coisa muito esquisita que é os fãs. Não é nada disso que me interessa. Portanto, se a escrita me aparece quando quer, eu não tenho que a contrariar porque não tenho que fazer nada para que resulte de outro modo. A única pressão a que me sujeito é esta que me está a acontecer agora, porque tenho medo de que o este livro desapareça. Porque vivi com a primeira frase deste livro tantos anos. É um romance? É. Não me pergunte que tamanho tem porque não sei. Mas tenho medo de que ele se sature. Por isso, vou dizer não, não, anda cá que eu estou aqui. Escreve à mão ou no computador? Embora pareça uma contradiçã­o com a imagem que as pessoas têm de mim, sou extremamen­te competente em informátic­a. Resolvo 90% dos problemas que aparecem aqui em casa com o meu namorado e com amigos. Gosto muito de máquinas, desde que estejam paradas porque num carro não entro por implicar perigo para outros seres. Relaciona- se bem com a máquina? Tenho uma relação muito autoritári­a e muito arrogante com elas, é uma coisa que está ali para eu mandar nela. Quanto a escrever, faço- o no computador já há muitos muitos anos. Preguiçosa como sou, faço um esforço tremendo para escrever qualquer coisa à mão. Se tenho de tomar uma nota, comida para a Emily [ a gata, por exemplo, faço só o “C” [ de comida] e o desenho do gato. Só que depois não sei o que escrevi. E a investigaç­ão? É na internet, porque é uma coisa fabulosa. Eu continuo a apreciar as grandes enciclopéd­ias na Biblioteca Nacional mas agrada- me ter as biblioteca­s do mundo todas ao alcance da mão. É uma coisa extraordin­ária e maravilhos­o isso. O que não pratico e nem nunca farei, porque odeio e assusta- me, é a interação das redes sociais. Ter o espaço invadido por não sei quantas pessoas. Já os e- mails endoidecem- me, tanto que mudo frequentem­ente de endereço e deixo tudo esquecido no anterior. Se alguém me manda um e- mail é como uma agressão. E não lhes respondo. E o fim do livro tradiciona­l por causa do livro digital... Não me faz impressão porque o texto é o texto e o livro é um suporte que tem poucos séculos. Se o suporte vai mudar não me preocupa. O texto é o texto, esteja onde estiver. O livro tem o tempo do Gutenberg, é muito recente. Gostaria imenso de folhear livros de papiro ou de pele de carneiro. Principalm­ente, gosto do grande livro imaterial – esse está a desaparece­r –, o livro oral que é quase aquele sonho do Fahrenheit do Bradbury: ter um livro na cabeça. Os atores têm Shakespear­e na cabeça. Não é impossível a pessoa ter livros na cabeça! O livro acaba para si quando o entrega ao editor? Sim, acabou, o livro é dele e do editor. Cada um segue o seu caminho e eu só quero é ser abençoada por outro texto. Mesmo assim os livros regressam como prova o Prémio Camões. Eu não consigo medir aquilo que faço em termos de importânci­a, até porque não gosto que confundam isto com modéstia. A noção que tenho do mérito é associada ao trabalho, como eu não escrevo como trabalho, não vejo que tenha mérito nisso. Escrever é uma coisa natural e o natural não tem mérito. Mas não podia recusar! Não ia recusar uma coisa que pessoas que amo tanto me queriam oferecer, mas fiquei muito atrapalhad­a. E sabe porque é que atendi o telefonema? Porque eu nunca atendo telefonema­s de números que não conheço, não quero pessoas a entrarem no meu quotidiano. Atendi o telefonema porque vi que era do estrangeir­o e estava à espera de que nascesse um bebé em Creta. E pensei que era o nascimento do meu bebé, mas não. Fiquei tão atrapalhad­a. Felizmente tenho o meu cavaleiro andante, que se pôs aqui de arco e flecha à porta a filtrar tudo. Tenho essa bênção de ser muito, muito protegida.

Há muita coisa má, porque a fraude também se aplica à ficção e à poesia Sou muito do século XIX, também porque não aceito limitar- me à época em que nasci “SE ALGUÉM ME MANDA UM E- MAIL É COMO UMA AGRESSÃO”

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Emily Duncan, a gata, só aparece aos visitantes durante uns segundos. Quando chega a hora das fotografia­s, é certo e sabido que desaparece da vista

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