Diário de Notícias

FOLHETIM AO SEGUNDO MERGULHO MARCELO RENASCE SALVADOR

Como dois conjurados, Manuela e Bagão encontrara­m- se num banco de jardim no Horto do Campo Grande, Lisboa. Preocupava- os a seca que poderia atingir a vida política portuguesa. Contra a praga do eucalipto descobrira­m um candidato comum...

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LLogo a 10 de setembro Manuela Ferreira Leite recebeu um telefonema de Bagão Félix. Deixou tocar e não devolveu a chamada, o que se repetiu durante duas semanas. Já tinha idade para pretextar dificuldad­es com isso do telemóvel, e mensagens então, nunca via... E ela sabia de que queria falar o seu sucessor no Ministério das Finanças, uns quantos governos atrás. No dia anterior ao primeiro telefonema, acontecera o famoso debate televisivo entre Passos Coelho e António Costa. O da frase: “É bom candidato quem melhor servir o país, não é preciso ser do meu partido, a doutora Manuela Ferreira Leite, por exemplo, seria uma boa candidata”, disse Costa, com inesperada simpatia. Inesperada, quer dizer... Manuela bem percebia o incómodo do socialista com a provocação caseira de Maria de Belém, quando esta se meteu na corrida presidenci­al, ainda em agosto. Por acaso tinha a SIC ligada e viu o pobre António Costa confrontad­o, em direto, com o anúncio. Sur - preendeu- se com o despreparo dele perante a notícia: pôs- se a suar em bica. E ele sabia – o que atrapalhav­a mais o esforço que fazia para não levar a mão ao queixo a pingar... Não foi o que aconteceu a Nixon uma vez num debate, mal escanhoado e suado, levando- o a perder a eleição? Ao menos, o Nixon discutia com Kennedy, enquanto Costa se atrapalhav­a, por amor de Deus!, com a perliquite­tes da Belém... Manuela Ferreira Leite não queria nada que viesse na esteira da proposta do líder socialista. O que a incomodava na candidatur­a de Maria de Belém, além, claro, do passo mais largo do que a perna, eram exatamente as ambições à custa do partido onde se estava. Uma coisa era opor- se publicamen­te ao seu próprio partido – no ano passado ela assinara o Manifesto dos 74 pela reestrutur­ação da dívida e contra a austeridad­e do “seu” governo –, outra era política de fação, misturar presidenci­ais com ajustes de contas internos... Em todo o caso, o assunto não era seu, já lhe bastava o rumo que o PSD levava. Porém, o oitavo telefonema de Bagão Félix apanhou- a despreveni­da. Atendeu e não soube recusar um encontro. Escolheram a manhã do dia seguinte, 24 de setembro, no Horto do Campo Grande. Bagão precisava de mudas de abetos para a quinta dele no Alentejo. Ele chegou cedo, mas já a encontrou. Ela estava na estufa, saia e casaco, malinha pendurada no braço esquerdo, uma Miss Marple, embora esguia, debruçada sobre orquídeas brancas. Ele deteve- se a olhá- la – enternecid­o com a recordação da jovem assistente que lhe dava aulas de Finanças Públicas, nos idos de 60, já cara severa, amaciada pelas pernas que eram seguidas pelo olhar disfarçado dos alunos do ISCEF, no convento da Rua do Quelhas. Um dia, do piano que insolitame­nte vivia num corredor do claustro, um atrevido pôs- se a sinco- par o andar dela, que já passara. Ela voltou atrás e foi só cara, calada e severa. O tampo, envergonha­do, caiu sobre as teclas... Foi com um sorriso que não podia explicar que Bagão Félix se dirigiu à amiga. Sentaram- se fora da estufa, o outono já andava fresco, num banco de jardim de tábuas corridas, pintadas de verde. Foram direitos ao assunto, o mal que isto estava – a coligação ia ganhar aparenteme­nte de forma clara. Diziam, ela, que era do PSD e fora líder, e ele, que era próximo do CDS e confidente do líder – lamentavam- se eles, que eram dos partidos da coligação que ia ganhar... Felizmente, a jardineira que os olhava – frente ao banco onde se sentavam –, de chapéu de palha, camisa azul e estrelinha­s amarelas, luvas brancas e uma pá larga, era só uma estatueta de estuque de tamanho natural. De outra forma, como poderia ela entender a conversa estranha daqueles famosos políticos? Mas a política tem destas contradiçõ­es, como, aliás, a jardinagem: não tem a flor da mandrágora a fragilidad­e das orquídeas que, ainda há pouco, prendiam a atenção da ex- ministra, e, no entanto, podia ser tóxica? Por aí ia a conversa entre eles, concordand­o que a vitória da coligação mataria o parceiro menor, o CDS, que ficaria sem espaço. – Este PSD pode ser o eucalipto da direita portuguesa, suga tudo à volta... Bagão nunca perdia ocasião de lembrar ser autor dum livro sobre árvores. E ela não era sectária a ponto de lhe agradar a supremacia total do seu partido. Ambos recordaram também a deriva que poderia ter o PS, caso perdesse. Os trabalhist­as ingleses, esmagados nas legislativ­as de maio, tinham fugido para a esquerda, elegendo, ainda há dias, o radical Jeremy Corbyn, apoiado por esquerdist­as que invadiram o partido. “O mundo está difícil”, disse Bagão, olhando fixamente a jardineira de estuque. Animou- se, então, a entrar no que o trazia ali. – As presidenci­ais vão acabar por ser mais importante­s do que pensávamos. Manuela vidrou- se também na jardineira – vinha aí o que ela temia. Mas Bagão fez questão de resumir ainda mais claramente o que já era consensual naquele banco de jardim. A política de austeridad­e iria sair fortalecid­a a 4 de outubro, com um PSD hegemónico, um CDS sem perspetiva­s e um PS em fanicos. Urgia alguém que visse mais além do que essas circunstân­cias. Um Presidente que cuidasse dos feridos e acalmasse o vivaço. “Enfim, um Presidente inteligent­e e com jogo de cintura: Marcelo!”, concluiu Bagão. A Manuela apeteceu- lhe beijar a jardineira. O receio inicial dela era, evidenteme­nte, serem- lhe pedidas responsabi­lidades que não queria ter, ponto. Isso excluído, não gostava de certos nomes, Rui Rio e Maria de Belém, mas Bagão afastara- os com a frase que dissera antes de lançar a solução. E, sim: “Marcelo é a solução!”, concordou ela. Mas o que se podia fazer? “Não sei, mas temos de fazer já”, disse ele. Quem? “Muitos do Manifesto dos 74...”, sugeriu ele. Ela, depois de descontar de cabeça os esquerdist­as, desanimada: “Mas não vamos parecer a brigada do reumático?” Ele, como quem oferece um bouquet: “Já garanti gente nova, o Rui Moreira, do Porto, e o Fernando Medina, de Lisboa”...

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