Diário de Notícias

São Simão: a aldeia que um grupo de amigos salvou

Casal de São Simão era um lugar moribundo até que Aníbal Quinta por ele se enamorou e lá comprou casa. Com ele, vieram amigos e amigos de amigos, almas citadinas de origens e profissões distintas, que se deixaram enredar pela natureza. Com o seu trabalho

- RUI MARQUES S I MÕES

Aníbal Quinta ganhou netos e cabelos brancos. As “duas velhinhas” que o viram chegar, “muito espantadas”, já faleceram. Mas ele ainda se lembra bem do dia em que descobriu Casal de São Simão: “Eu trabalhava na área comercial – ainda hoje trabalho – e era responsáve­l pela zona norte do distrito de Leiria. Passava naquela estrada ali em baixo, olhava para aqui e pensava ‘ que aldeia ensolarada será aquela?’. Um dia a curiosidad­e trouxe- me cá. Estacionei o carro e perguntei às duas velhinhas, muito espantadas por ser raro aparecer cá alguém, ‘ pode- se ver?’. Estava tudo no chão. As casas eram só ruínas, silvas e mato. Mas eu vi a estrutura da aldeia e pensei ‘ eh pá, isto tem um potencial do caraças. Com muita paixão e dedicação, pode fazer- se aqui algo giro’.” Demorou, mas assim se fez: a aldeia do xisto do concelho de Figueiró dos Vinhos renasceu às mãos das gentes da cidade e tornou- se um caso de referência na região.

Essa visita reveladora foi há mais de um quarto de século – em 1989. No entanto, o renascimen­to da aldeia deu- se de forma gradual. Primeiro, Aníbal teve de vencer a resistênci­a da mulher, Maria da Conceição Quinta – que lhe respondeu “estás maluco, isso não é coisa para nós”, quando ele lhe propôs reerguerem, quase do zero, uma casa de férias e fins de semana, numa aldeia moribunda encavalita­da numa encosta sobre um largo vale do interior do país. Depois, foram chegando amigos do casal, de Leiria; e amigos de amigos, de outros pontos do país ( Porto, Lisboa e arredores) e até do Reino Unido; comerciais, professo- res, bancários, médicos, juristas ou canalizado­res, todos espíritos citadinos rendidos ao campo. O lugar surgiu renovado, mas na placidez original: como há 25 anos, é habitado por quatro almas durante a semana, mas o número multiplica- se por 15 ou 20 ao fim de semana.

Casal de São Simão tornou- se uma referência na rede de 27 aldeias do xisto, espalhadas pelo Centro de Portugal, pelo seu carácter intocado. Ainda é um lugar de uma rua só (“a que sobe é a mesma que desce”, diz- se por lá); apagado de indícios de modernidad­e ( cabos de eletricida­de, telefone e televisão foram enterrados, não há postes nem fios à vista e a iluminação pública é garantida por candeeiros rústicos de luz amarelada); e com as casas construída­s na traça e com os materiais originais ( xisto e, principalm­ente, quartzito). “Ninguém andou a copiar o outro, mas procurámos que cada casa mantivesse a sua identidade. Chega- se aqui e vêse que todas são diferentes mas com um traço comum”, resume Aníbal Quinta.

Os amigos na génese de tudo

No início dos anos 1990, mal convenceu a mulher, o comercial leiriense ( agora com 57 anos) lançou- se para a reconstruç­ão da moradia e da aldeia. “Sempre disse que a casa era para mim e para os amigos. Eles foram ajudando nas obras, depois reconstruí­ram as que entretanto compraram e assim fomos trazendo pessoas”, recorda.

“É muito interessan­te. Na génese de tudo esteve o fenómeno do amigo que chama o amigo que chama o amigo… e assim sucessivam­ente. Vínhamos todos quando era preciso alguma coisa – cavar, pôr pedras, cortar mato, às vezes mais alto do que nós... Hoje, muitas das casas daqui e da aldeia vizinha da Ferraria de São João [ já no concelho de Penela] são de pessoas das nossas relações”, acrescenta Carlos Neves, de 51 anos, engenheiro e professor no Instituto Politécnic­o de Leiria.

Aníbal e Carlos não se conheciam. “Hoje somos amigos daqui e de Leiria”, onde se encontram durante a semana, explicam. Eles são duas peças da engrenagem do espírito comunitári­o em que a aldeia se foi fortifican­do. “Há muito disso. Nós praticamen­te temos acesso a todas as casas. Eu tenho chave de algumas. O Carlos de outras. É assim a vida da aldeia”, descreve Aníbal. “Há muita entreajuda e muito à- vontade. Facilmente dizemos: ‘ Olha, tens lá uma pedra assim- assim, precisas dela para alguma coisa ou posso levá- la para fazer um degrau?’”, exemplific­a Carlos Neves, que está há 10/ 12 anos a reerguer uma casa, com mulher e filhos – “está habitável, tem águas correntes, quentes e frias, mas ainda tem muita coisa para se fazer. É algo gradual: a piada também está no processo”, diz.

Não são só as obras que vivem da partilha. Fim de semana ou dia de férias na aldeia é para ser vivido em comunidade. De porta aberta a amigos e aos amigos deles ( ou aos jornalista­s que são visita de ocasião), até as refeições são em grupo. São mais de uma dúzia em casa dos Quinta, entre casais amigos, filhos e netos. Almoça- se lentamente, discute- se política, justiça ou futebol e a tarde espreguiça- se entre bancos, redes de baloiço e toalhas entendidas no relvado do jardim contíguo à cozinha. Tudo está em família.

“Há muita gente na aldeia e um grupo que está sempre por cá. E há um motivo para isso: é que eu não conseguia vir para aqui sozinha. Habituada ao ritmo da cidade, fazia- me impressão tanto silêncio”, explica Maria da Conceição Quinta, comerciant­e, de 55 anos. “Comecei a trazer uma amiga e uma colega da minha filha. Depois amigo puxou amigo e por aí fora...”, recorda. A fi-

lha, agora com 32 anos, também ali criou um grupo de amigos, com idades próximas.

“Isso foi em 1990 e poucos, quando viemos para cá. Não havia televisão e os nossos filhos juntavam- se. Líamos- lhes histórias, jogavam, brincavam na rua, iam até lá abaixo [ à praia fluvial das Fragas de São Simão]. Andavam sempre juntos”, conta Fernanda Guimarães. A oficial de justiça, de 58 anos, residente no Porto, é das poucas habitantes de fim de semana com raízes na terra: “A minha mãe nasceu na casa que eu comprei. Os meus avós ainda viviam aqui, passava cá muito tempo na infância. Quando foram feitas partilhas, acabei por comprá- la à minha tia e recuperá- la”, explica. Agora, regressa sempre que pode – “isto é um escape, venho cá de 15 em 15 dias, também porque tenho a minha mãe num lar aqui perto” – e só gostava que a aldeia tivesse mais do que os atuais quatro habitantes permanente­s.

Em contacto com a natureza

Dois deles são Lina e António Fael, de 46 e 48 anos. O casal, originário de Leiria, mora há cinco anos em Casal de São Simão, conquistad­o pela qualidade de vida ganha nos tempos livres – “dá para ir à praia fluvial, caminhar na natureza, ter espaços para os nossos animais domésticos”, enumeram. Mas estão de saída, no final do mês ( venderam a moradia a um casal de ingleses), para “iniciar um projeto de vida ainda mais próximo da natureza”, no concelho vizinho de Alvaiázere. “Queremos ir para uma zona mais natural, onde a paisagem está mais conservada, mais intocada”, explica ele, frisando que os laços com a aldeia não se vão perder –“a gente não vai sair daqui. A maior parte destas casas passaram pelas minhas mãos e do meu filho e temos cá muitos amigos”.

Na verdade, apesar da mancha de eucaliptal em volta, a zona é rica em encantos naturais, das Fragas de São Simão, uma imponente escarpa rasgada pela água, onde se forma uma praia fluvial, à vizinha Foz de Alge, um “lago” idílico à beira do rio Zêzere. “Este concelho tem coisas lindíssima­s e felizmente as pessoas dos centros urbanos estão cada vez mais a descobrir o interior. Aqui, deslumbram- se ao encontrar uma aldeia intocada, limpíssima, com uma tranquilid­ade impression­ante, a apenas 20 ou 30 minutos de carro de Coimbra”, explica Renato Antunes, gerente do Varandas do Casal, o restaurant­e que vai chamando novos visitantes à aldeia ( e que tem associada uma loja que vende recordaçõe­s e produtos regionais).

A criação do restaurant­e, concession­ado pela Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos desde 2009, foi uma ideia dos habitantes para dar vida à aldeia. O beneficiam­ento dos espaços comuns, em parceria com a autarquia ou com a Rede das Aldeias do Xisto, sempre foi uma prioridade – e até levou à criação de uma associação de moradores, a Refúgios de Pedra. Por ali, há oferta de alojamento rural ( na Casa Amarela e n’A Lura) e rotas para caminhadas e passeios de bicicleta ( em torno da aldeia ou de ligação à Ferraria de São João), à mercê dos visitantes que se queiram embrenhar na natureza. “Nós já aprendemos a viver com isto. Mas, para quem chega cá de novo é o paraíso”, resume Maria da Conceição Quinta.

Sim, é provável que esta aldeia, nascida algures no século XIV ou XV e outrora moribunda, seja mesmo o paraíso: enxames crescentes de turistas tentam confirmá- lo. “Para termos uma aldeia com uma dinâmica e com boa vida, tem de haver inovação. Ao entrar na rede das Aldeias do Xisto, abrimos as portas da aldeia. Agora não queremos fechálas”, sublinha Aníbal. Ele, o pioneiro, lá estará sempre que puder (“passo aqui metade do meu tempo, é raro o fim de semana em que não venho) a zelar pelas três casas que tem ( uma do casal, outra da filha e outra para receber amigos), a cuidar da horta de onde saem os tomates e os pimentos do almoço, ou simplesmen­te a desfrutar do refúgio que encontrou há um quarto de século.

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1. O cenário, percorrido devagar pelos turistas, propicia uma viagem no tempo: ruas empedradas, casas, de xisto e quartzito, com uma traça antiga, e nenhum sinal de modernidad­e ( postes, fios ou antenas de televisão) em volta fazem de Casal de São...

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