Diário de Notícias

Sobressalt­o

- JOEL NETO

Opior é quando tenho de ir a Angra. Não por causa de Angra: Angra é uma cidade linda. Desço até à Praça Velha, entro no Basílio Simões, sento- me a tomar uma bica no John’s Café, e nem por um instante esmorece esse encantamen­to que só tem um lugar que nos é ao mesmo tempo profundame­nte familiar e um nadinha estranho, como uma divisão lá de casa que não povoamos há muito. Gosto de ir a Angra ao sábado de manhã. De ver os plantios, de comprar pastéis de nata n’O Forno, de custear um bocadinho. Quando tenho de ir a Angra durante a semana, é uma chatice. Já não posso fazer a minha caminhada matinal, com a Catarina e o Melville; já não terei espaço para me sentar no jardim, a meio do dia, a fumar um cigarro de intervalo entre o trabalho dos livros e o dos jornais; já não conseguire­i passar na venda ao fim da tarde, a praticar a sociologia. Se pudesse, marcava tudo para o sábado de manhã. Mas a vida está repleta de chatices, mentiras e impostos, como dizia o Zeca – simplesmen­te não se consegue fazer tudo ao sábado de manhã. E, depois, ainda há as consultas. A vida é mesmo mais difícil a partir de certa idade. Hoje tenho de ir a Angra. Ando abatido há dias. Pedi que chovesse, para ver se ao menos me doía menos a ausência de caminhada matinal. Mas está um dia lindo. Nunca viveria em Angra. Também não tornaria a viver noutros lugares em que já vivi: Oeiras, Cascais, Seixal. Cheguei àquele ponto da vida em que acho que ganhei o direito a escolher: ou vivo nos Dois Caminhos da Terra Chã, ou nos bairros históricos de Lisboa, ou então na Village. É tudo quando imagino que a vida ainda me reserve de memória, de conforto e de aventura. Estou mesmo no ponto para a minha primeira crise de meia- idade. A quantas é que um homem tem direito, exactament­e?

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