De como aquilo que fazemos às crianças (e vice-versa) permanece com elas para sempre
Não demorou sequer uma hora depois de a terem puxado de entre as minhas pernas para se constatar que havia alguma coisa errada. Francamente errada”, lê-se logo no primeiro parágrafo de Deus Ajude a Criança. “Ela era tão negra que me assustou. Negra como a noite, negra do Sudão. Eu tenho a pele clara, um bom cabelo, aquilo a que se chama amarelo-forte, e o pai de Lula Ann também.”
Assim se propõe o mais recente romance de Toni Morrison, norte-americana que em 1993 explodiu na cena da literatura mundial com um Nobel tão surpreendente como – acabámos por verificar – merecido. Desde então, os prémios nunca mais pararam de acumular-se. Nem os livros – dos romances à não ficção, passando pela área infantil e pela dramaturgia.
Morrison tornou-se uma instituição: para a literatura feminista, para a literatura das minorias em geral e para a literatura afro-americana em particular. Clinton concedeu-lhe a Medalha Nacional das Humanidades, Obama a Medalha Presidencial da Liberdade. A Universidade de Princeton atribuiu-lhe o estatuto de professora emérita. Editoras de todo o mundo anglo-saxónico passaram a usá-la como consultora.
Talvez por isso, e passados os oitenta, tenha sentido a necessidade de revisitar a sua própria obra. Porque é isso que Deus Ajude a Criança constitui, em primeiro lugar: uma espécie de mínimo múltiplo comum – de revisão da matéria dada, mas também de reposicionamento – entre vários dos anteriores livros de Morrison, entre os quais o inevitável Beloved, de 1987, também já traduzido pela Presença (mas também The Bluest Eye, de 1970, ou Song of Solomon, de 1977).
O resultado é menos do que retumbante, para usar um eufemismo a que a autora – nascida Chloe Ardelia Wofford, em 1931, no Ohio – já ganhou o direito. Espécie de conto de fadas contemporâneo, Deus Ajude a Criança (calembur do título God Bless The Child, canção mítica de Billie Holiday) tem bons momentos, mesmo excelentes momentos. Mas raramente chega a cumprir a promessa de visceralidade e desconcerto daquele primeiro e arrebatador parágrafo em que Sweetness se dá conta, com um misto de estranheza e repulsa, de que a sua desejada Lula Ann, mais tarde autoproclamada apenas Bride, é tão escura como mais ninguém à sua volta, o que ao mesmo tempo destruirá o seu casamento – a mãe jamais conseguiria convencer o marido de que não se enrolara (sic) com outro homem – como trairá o decidido trajeto de toda a sua família em direção a tons de pele progressivamente mais claros e felizes.
A rejeição é, pois, o primeiro gesto de violência infligido sobre a(s) pessoa(s) em Deus Ajude a Criança, e vai a tal ponto que a pequena Bride chega a desejar ser espancada por Sweetness só para poder sentir o toque da mãe. Mas qualquer mau comportamento que arrisque é sempre castigado sem recurso às mãos. E, entretanto, surge outra violência ainda: o abuso sexual de crianças, de que Bride é testemunha.
Quando a conhecemos, depois de um primeiro momento em que a polifonia do romance nos leva à interioridade de Sweetness, ela está a caminho da penitenciária de onde vai ser libertado, após anos de cárcere, o alvo da sua denúncia, por sinal uma mulher. Eéa partir desse reencontro que – de uma maneira menos subtil do que talvez fosse desejado – Bride espera expiar o seu sentimento de culpa. Acontece que, apesar da sumptuosidade das propostas, os esforços da autora para conservar a protagonista no papel de princesinha do século XXI acabam por tirar-lhe espessura.
Rejeitada em casa, Bride triunfou na mesma. As suas escolhas mais desesperadas proporcionaram-lhe oportunidades e o mundo sempre mudou alguma coisa. Hoje, ela continua negra do Sudão, de um negro-azulado difícild edis cernirà noite. Maséb ela eb em-sucedida, uma executiva da área da cosmética que vive num bom apartamento e desperta a cobiça de homens elegantes. Só que nunca chega a vencer a superficialidade do trabalho a que se dedica, o que acaba por transformar a metáfora em que Morrison mais investiu na principal fraqueza do seu romance.
Intimidade – eis o que talvez falte em Deus Ajude a Criança. Porque as personagens poucas vezes ultrapassam a bidimensional idade do arquétipo e porque, a quase toda a extensão da narrativa, é demasiado evidente o esforço da autora para manter sob seu controlo os passos daqueles sobre quem escreve, num jogo de manipulações que quase nunca permite ao livro levantar voo.
Que tanta da demanda já tivesse aparecido nos romances anteriores de Toni Morrison só se torna desconcertante quando se percebe que, entretanto, não traz nada de novo. Mas, num trajeto tão auspicioso como sempre foi o da autora de Beloved, o que poderá, no fim, constituir um romance falhado a não ser um acidente?
Bride nunca chega a vencer a superficialidade do trabalho a que se dedica, o que acaba por transformar a metáfora em que Morrison mais investiu na principal fragilidade do seu romance