O séc. XVIII filmado com lentes da NASA
A direção fotográfica de Barry Lyndon envolveu lentes que tinham sido criadas pela Zeiss, por encomenda da NASA
Ao lançar-se no projeto de Barry Lyndon, Stanley Kubrick quis que o seu século XVIII fosse tão realista quanto possível. Tal desejo criativo não tinha nada de óbvio – afinal, numa adaptação do romance picaresco de William Makepeace Thackeray, de que realismo cinematográfico se poderia tratar?
O realizador estabeleceu duas regras de trabalho com o diretor de fotografia John Alcott (1931-1986): por um lado, recriar modos de composição e iluminação da pintura da época, em particular de William Hogarth (profundamente admirado por Thackeray); por outro lado, forçar até ao limite a não utilização de luz artificial para “compensar” problemas decorrentes dos espaços menos iluminados.
Alcott conhecia bem o grau de exigência de Kubrick, tendo trabalhado na qualidade de operador em 2001: Odisseia no Espaço (1968), fotografado pelo mestre britânico Geoffrey Unsworth (1914-1978), e assinando depois a fotografia de Laranja Mecânica (1971); a sua derradeira colaboração ocorreria em Shining (1980).
A rodagem de Barry Lyndon envolveu um dos desafios mais extremos com que Alcott alguma vez se deparou. Assim, nas cenas de interiores, em particular os jogos de cartas, Kubrick insistiu em filmar apenas com a luz das velas, evitando a iluminação global e uniformizante das tradicionais “reconstituições” de época.
A solução encontrada entrou para a história da fotografia em cinema –e é bem reveladora da atenção com que o realizador sempre acompanhou a evolução das técnicas de imagem. Kubrick sabia que a companhia alemã Zeiss tinha desenvolvido lentes especiais para a NASA, visando as condições específicas em que os astronautas iriam fotografar a Lua: a grande abertura de diafragma permitia obter excelente definição sem perda de profundidade de campo. Graças a algumas adaptações, tais lentes foram decisivas para o inconfundível look de Barry Lyndon (valendo a Alcott o Óscar de melhor fotografia de 1975).
Não será exagerado considerar que os filmes de Kubrick envolveram sempre desafios fotográficos, desde o retrato a preto e branco dos combates da Primeira Guerra Mundial em Paths of Glory (1957), até à reconstrução de algumas ruas de Nova Iorque nos estúdios de Pinewood (arredores de Londres), para o filme final De Olhos Bem Fechados (1999). Se é verdade que, como sugeria Hitchcock, o cinema é a arte de construir uma visão do mundo, poucos foram tão radicais como Kubrick na concretização dessa tarefa. JOÃO LOPES