Diário de Notícias

Não aos heróis

- ANDRÉ MACEDO

Sandro Pertini foi um dos melhores presidente­s italianos de sempre. Os portuguese­s talvez se lembrem dele por tê-lo visto festejar a vitória da Itália no Mundial de 1982 sobre a Alemanha. Pertini tinha 86 anos, mas os saltos de alegria na bancada do Santiago Bernabéu, em Madrid, eram os de um garoto a quem tinham acabado de entregar o brinquedo mais desejado. Ao contrário de Portugal, uma velha nação ossificada durante a ditadura do Estado Novo – para depois, em 1974, abrir as comportas da juventude a uma nova classe política desejosa de mudar o país e também de se afirmar – , em Itália o envelhecim­ento excessivo da política instalou uma espécie malsã de república de senadores, quase nenhuns da estirpe humana e intelectua­l de Pertini. Políticos que dominavam os corredores do poder e entupiam a democracia com os seus interesses, cultivando relações perigosas, escuras, sugando metodicame­nte o Estado. Pertini não era desses, era o contrário.Veterano da primeira e segunda guerras mundiais, uma vez ele disse: não gosto de heróis, tenho medo do que eles fazem e como põem em risco a vida dos outros, eu prefiro os heróis do quotidiano. A frase não era exatamente esta, mas a ideia pode ser resumida assim. É preciso ter vivido muito, ter vivido plenamente e ter compreendi­do alguma coisa de essencial sobre o mundo e as pessoas para se chegar à conclusão de Pertini; uma conclusão que contraria a sede por salvadores excecionai­s que hoje define – e inevitavel­mente frustra e diminui – a ação política concreta. Anteontem, em boa altura, foram celebradas as vidas públicas de Mário Soares e de Cavaco Silva. Apesar de abril ter ficado para trás, a classe política portuguesa continua jovem, num alvoroço permanente de entradas (demasiado fáceis) e saídas (demasiado precoces), o que se traduz na redução da capacidade de o país pensar sem urgência. Soares e Cavaco são o oposto um do outro. Assumiram papéis diferentes, cultivaram ideias antagónica­s, têm estilos divergente­s, apoiantes que não coincidem, ambos cometeram erros e também acertaram. Expuseram-se, disputaram eleições, perderam e ganharam. A história vai recordá-los com palavras desiguais. Sem os excessos da idolatria ou da crítica ilimitada, sem ter, aqui, de os medir e comparar, as homenagens que ambos receberam no sábado são uma boa forma de Portugal se ver ao espelho. Mário Soares e Cavaco Silva não são heróis – e ainda bem, diria Sandro Pertini.

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