Os 70 km que separam Jerusalém de Telavive parecem 70 anos-luz
Um festival de ópera em Jerusalém foi pretexto para visitar um país que, com mais ou menos justiça, está sempre no olho do furacão do conflito do Médio Oriente. A partir de estadas nas duas principais cidades, Jerusalém e Telavive (com o mar Morto pelo me
Pormenores de um (ainda nem) recém-chegado
› A peculiaridade do nosso destino sente-se remotamente logo no Aeroporto Atatürk (Istambul), com entrada na sala de embarque condicionada por elementos que sujeitam cada passageiro a breve questionário. Chegados ao Ben Gurion (Telavive), o único pró-forma é a obtenção de um visto temporário de permanência
Algumas frases curtas que dizem muito
› Falando informalmente com a funcionária que nos recebeu no aeroporto de como tudo é próximo em Israel, ela diz: “Israel é muito pequeno. Todos o combatem, mas na verdade é um país muito pequeno. Mas nós somos fortes!” No shuttle que nos leva a Jerusalém, perguntando inocentemente sobre se é seguro para um forasteiro passear à noite por Jerusalém fora, o condutor logo replica: “Ah, sabe, aquilo que os media divulgam no seu país não corresponde à verdade...” Da nossa guia, logo na primeira manhã: “Não me vou meter em questões políticas!...” Dias depois, resumia assim: “Nós, judeus e árabes, somos todos parentes próximos, por isso é que existem estas desavenças atávicas.”
Uma ilha de serenidade no meio da Cidade Velha
› Bem perto da Igreja do Santo Sepulcro, ladeada por ruas de intensa atividade comercial, a Igreja do Redentor é uma ilha de paz e frescura no bulício da Cidade Velha. Espécie de posto avançado da Igreja Luterana Alemã, foi inaugurada na sua configuração externa atual pelo Kaiser Guilherme II, que desenhou ele próprio o torreão. Tem um museu arqueológico, um café, um claustro muito poético e do cimo da torre tem-se talvez a melhor vista 360 graus sobre a Cidade Velha e extramuros. No balcão de entrada, uma alemã vai ensinando algum alemão a um palestiniano. No claustro, um homem muçulmano aprovisiona-nos de água fresca (são três da tarde, uns 35 graus à sombra). Ele não pode: é Ramadão, tem de esperar pelo pôr do Sol.
O invisível chega depressa
› A polícia não é uma presença que salte à vista em Jerusalém, mas qualquer contingência que ocorra ela não só chega num esfregar de olhos como no mesmo esfregar controla qualquer situação, limitando ou mesmo interrompendo a circulação, se preciso for. Já agora, Jerusalém tem um trânsito febril das seis da manhã à meia-noite e nunca vi cidade onde tanto se buzine!
Quatro bairros, mas quase só dois povos os habitam
› A Cidade Velha tem desde o domínio otomano uma divisão tradicional em quatro bairros: cristão, arménio, judeu e muçulmano. Mas com os cristãos quase exclusivamente religiosos e os arménios bastante diminutos, são na verdade os muçulmanos que constituem o grosso da população residente e comerciante. O bairro judeu, conquanto se promova o seu povoamento, está em boa parte adstrito a instituições de ensino religioso, sendo por isso muito comum cruzarmo-nos com homens em vestes como o da fotografia.
Retiro de memória e de paz
› Face a um acontecimento – o Holocausto – tão fulcral na história do povo judaico, teria sido fácil fazer do museu respetivo (o Yad Vashem) algo de panfletário ou impactante. Nada disso: ele está situado num pacífico vale, já fora do perímetro urbano, onde o ruído que chega é só o dos pássaros e o do vento roçagando nos ramos das árvores. O próprio edifício, um prisma triangular deitado, está integrado na paisagem, no meio de uma encosta. Na encosta oposta fica o memorial a todas as vítimas judaicas em todos os conflitos em que Israel esteve envolvido, desde 1948 (e até antes). No Yad Vashem, o impacto está todo no interior...
O sabbath toma conta de Jerusalém
› Após quatro dias numa cidade febril, de vida noturna ativa e disseminada, é um choque quando a sexta-feira declina e, em vez da hora de ponta, vemos uma cidade a ficar deserta de carros a circular e de pessoas a passear. Vindos da antiga estação de caminho-deferro de Jerusalém (hoje, um centro de artes e startups), quase o único local onde há bares abertos na cidade (!), regressamos por ruas desertas ao hotel. A dada altura, cruzamo-nos com um casal levando dois filhos pequenos numa cadeirinha dupla. A seu lado, um jovem (decerto árabe israelita) com uma metralhadora a tiracolo serve oficialmente de empurrador do carrinho. Os pais, por ser sabbath, não o podem fazer... No hotel, ao jantar, só comida de sabbath e até o vinho é um tinto (não há escolha) especial de sabbath! Tudo servido por empregados árabes. Os elevadores estão em modo sabbath: param em todos os andares, para os judeus não terem de carregar nos botões.
Chegada a um outro planeta
› Telavive é aberta, cosmopolita e descontraída, com um espírito quase Rio de Janeiro, mar, praias e marginal obligent... Cidade sem peso(s) histórico(s), onde toda a construção em altura (e existe muita!) denota cuidado arquitetónico, aqui temos uma vivência urbana perfeitamente secular. Em dia de Portugal-Croácia, o jogo passa em ecrãs gigantes nos bares de praia, com o passeio marítimo pejado de passeantes, ciclistas, “jogginguistas” e a água do mar, ali ao lado, sempre convidativa, mesmo durante a noite. É agora domingo à noite: um casal de judeus em vestes preto e branco passa por nós: estamos na praia, eles passeiam placidamente à beira-mar... Horas antes, na Ópera de Telavive uma responsável dizia-nos que, numa visita a Jerusalém certa vez com a filha pequena, esta lhe perguntara: “Porque usam estes figurinos?”, não compreendendo a indumentária rígida dos judeus ortodoxos nem a (fechada) dos muçulmanos e pensando tratar-se antes de vestes teatrais. O principal mercado de rua de Telavive atesta a fertilidade agrícola de um país de terras ingratas e Jaffa, logo a sul, cidade de seculares convivências inter-religiosas pacíficas, dá a Telavive a história, ou a patine, que lhe falta.
Uma gincana de controlos no aeroporto antes da partida
› Ainda antes de chegar, uma portagem controla a admissão ao complexo. Lá dentro, foram, se não estou em erro, seis controlos diferentes, começando por um questionário bastante incisivo. Apesar de tudo isso – e de até levarmos um documento ministerial certificando a nossa idoneidade – descobrimos à chegada a Lisboa que a nossa mala fora toda revistada e o cadeado forçado. Uma folhinha no interior, deixada por eles, explicava (?) o sucedido e pedia a nossa compreensão.