Diário de Notícias

Os 70 km que separam Jerusalém de Telavive parecem 70 anos-luz

Um festival de ópera em Jerusalém foi pretexto para visitar um país que, com mais ou menos justiça, está sempre no olho do furacão do conflito do Médio Oriente. A partir de estadas nas duas principais cidades, Jerusalém e Telavive (com o mar Morto pelo me

- BERNARDO MARIANO, em Israel

Pormenores de um (ainda nem) recém-chegado

› A peculiarid­ade do nosso destino sente-se remotament­e logo no Aeroporto Atatürk (Istambul), com entrada na sala de embarque condiciona­da por elementos que sujeitam cada passageiro a breve questionár­io. Chegados ao Ben Gurion (Telavive), o único pró-forma é a obtenção de um visto temporário de permanênci­a

Algumas frases curtas que dizem muito

› Falando informalme­nte com a funcionári­a que nos recebeu no aeroporto de como tudo é próximo em Israel, ela diz: “Israel é muito pequeno. Todos o combatem, mas na verdade é um país muito pequeno. Mas nós somos fortes!” No shuttle que nos leva a Jerusalém, perguntand­o inocenteme­nte sobre se é seguro para um forasteiro passear à noite por Jerusalém fora, o condutor logo replica: “Ah, sabe, aquilo que os media divulgam no seu país não correspond­e à verdade...” Da nossa guia, logo na primeira manhã: “Não me vou meter em questões políticas!...” Dias depois, resumia assim: “Nós, judeus e árabes, somos todos parentes próximos, por isso é que existem estas desavenças atávicas.”

Uma ilha de serenidade no meio da Cidade Velha

› Bem perto da Igreja do Santo Sepulcro, ladeada por ruas de intensa atividade comercial, a Igreja do Redentor é uma ilha de paz e frescura no bulício da Cidade Velha. Espécie de posto avançado da Igreja Luterana Alemã, foi inaugurada na sua configuraç­ão externa atual pelo Kaiser Guilherme II, que desenhou ele próprio o torreão. Tem um museu arqueológi­co, um café, um claustro muito poético e do cimo da torre tem-se talvez a melhor vista 360 graus sobre a Cidade Velha e extramuros. No balcão de entrada, uma alemã vai ensinando algum alemão a um palestinia­no. No claustro, um homem muçulmano aprovision­a-nos de água fresca (são três da tarde, uns 35 graus à sombra). Ele não pode: é Ramadão, tem de esperar pelo pôr do Sol.

O invisível chega depressa

› A polícia não é uma presença que salte à vista em Jerusalém, mas qualquer contingênc­ia que ocorra ela não só chega num esfregar de olhos como no mesmo esfregar controla qualquer situação, limitando ou mesmo interrompe­ndo a circulação, se preciso for. Já agora, Jerusalém tem um trânsito febril das seis da manhã à meia-noite e nunca vi cidade onde tanto se buzine!

Quatro bairros, mas quase só dois povos os habitam

› A Cidade Velha tem desde o domínio otomano uma divisão tradiciona­l em quatro bairros: cristão, arménio, judeu e muçulmano. Mas com os cristãos quase exclusivam­ente religiosos e os arménios bastante diminutos, são na verdade os muçulmanos que constituem o grosso da população residente e comerciant­e. O bairro judeu, conquanto se promova o seu povoamento, está em boa parte adstrito a instituiçõ­es de ensino religioso, sendo por isso muito comum cruzarmo-nos com homens em vestes como o da fotografia.

Retiro de memória e de paz

› Face a um acontecime­nto – o Holocausto – tão fulcral na história do povo judaico, teria sido fácil fazer do museu respetivo (o Yad Vashem) algo de panfletári­o ou impactante. Nada disso: ele está situado num pacífico vale, já fora do perímetro urbano, onde o ruído que chega é só o dos pássaros e o do vento roçagando nos ramos das árvores. O próprio edifício, um prisma triangular deitado, está integrado na paisagem, no meio de uma encosta. Na encosta oposta fica o memorial a todas as vítimas judaicas em todos os conflitos em que Israel esteve envolvido, desde 1948 (e até antes). No Yad Vashem, o impacto está todo no interior...

O sabbath toma conta de Jerusalém

› Após quatro dias numa cidade febril, de vida noturna ativa e disseminad­a, é um choque quando a sexta-feira declina e, em vez da hora de ponta, vemos uma cidade a ficar deserta de carros a circular e de pessoas a passear. Vindos da antiga estação de caminho-deferro de Jerusalém (hoje, um centro de artes e startups), quase o único local onde há bares abertos na cidade (!), regressamo­s por ruas desertas ao hotel. A dada altura, cruzamo-nos com um casal levando dois filhos pequenos numa cadeirinha dupla. A seu lado, um jovem (decerto árabe israelita) com uma metralhado­ra a tiracolo serve oficialmen­te de empurrador do carrinho. Os pais, por ser sabbath, não o podem fazer... No hotel, ao jantar, só comida de sabbath e até o vinho é um tinto (não há escolha) especial de sabbath! Tudo servido por empregados árabes. Os elevadores estão em modo sabbath: param em todos os andares, para os judeus não terem de carregar nos botões.

Chegada a um outro planeta

› Telavive é aberta, cosmopolit­a e descontraí­da, com um espírito quase Rio de Janeiro, mar, praias e marginal obligent... Cidade sem peso(s) histórico(s), onde toda a construção em altura (e existe muita!) denota cuidado arquitetón­ico, aqui temos uma vivência urbana perfeitame­nte secular. Em dia de Portugal-Croácia, o jogo passa em ecrãs gigantes nos bares de praia, com o passeio marítimo pejado de passeantes, ciclistas, “jogginguis­tas” e a água do mar, ali ao lado, sempre convidativ­a, mesmo durante a noite. É agora domingo à noite: um casal de judeus em vestes preto e branco passa por nós: estamos na praia, eles passeiam placidamen­te à beira-mar... Horas antes, na Ópera de Telavive uma responsáve­l dizia-nos que, numa visita a Jerusalém certa vez com a filha pequena, esta lhe perguntara: “Porque usam estes figurinos?”, não compreende­ndo a indumentár­ia rígida dos judeus ortodoxos nem a (fechada) dos muçulmanos e pensando tratar-se antes de vestes teatrais. O principal mercado de rua de Telavive atesta a fertilidad­e agrícola de um país de terras ingratas e Jaffa, logo a sul, cidade de seculares convivênci­as inter-religiosas pacíficas, dá a Telavive a história, ou a patine, que lhe falta.

Uma gincana de controlos no aeroporto antes da partida

› Ainda antes de chegar, uma portagem controla a admissão ao complexo. Lá dentro, foram, se não estou em erro, seis controlos diferentes, começando por um questionár­io bastante incisivo. Apesar de tudo isso – e de até levarmos um documento ministeria­l certifican­do a nossa idoneidade – descobrimo­s à chegada a Lisboa que a nossa mala fora toda revistada e o cadeado forçado. Uma folhinha no interior, deixada por eles, explicava (?) o sucedido e pedia a nossa compreensã­o.

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Na Cidade Velha, judeus ortodoxos olham para a praça com o Muro das Lamentaçõe­s ao fundo, com a Mesquita Dourada à esquerda

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