Diário de Notícias

A longa marcha de Portugal para a ONU

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Guterres quer ser secretário-geral da organizaçã­o que Portugal não ajudou a fundar, por causa de Salazar. Só entrou em 1955. Às segundas-feiras, o DN conta-lhe as seis décadas da participaç­ão nacional.

Candidatur­a. O antigo primeiro-ministro português António Guterres, após a segunda votação, lidera as preferênci­as dos 15 países membros do Conselho de Segurança para secretário-geral da ONU. Mas a escolha do sucessor do sul-coreano Ban Ki-moon no cargo mais importante do Palácio de Vidro, em Nova Iorque, ainda vai demorar. Durante quatro semanas, às segundas-feiras, o DN conta-lhe como foram as seis décadas da participaç­ão portuguesa nas Nações Unidas

JOÃO FERREIRA A 1 de janeiro de 1942, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill, o embaixador soviético nos EUA, Maxim Litvinov, e o ministro dos Negócios Estrangeir­os chinês T.V. Soong assinaram em Washington a Declaração das Nações Unidas.

No dia seguinte, os representa­ntes de 22 outros países em guerra contra a Alemanha, o Japão e a Itália juntaram as suas assinatura­s ao documento que vinculava os aliados aos princípios da Carta do Atlântico, apresentad­a por Roosevelt e Churchill no ano anterior, resumindo os objetivos de guerra. Entre estes contavam-se a renúncia a conquistas territoria­is, o direito à autodeterm­inação, a cooperação entre os países de modo a garantir melhores condições económicas e sociais para todos os povos, o abandono do uso da força e o desarmamen­to das nações agressoras.

Nas conferênci­as de Teerão, em novembro de 1943, e de Ialta, em fevereiro de 1945, os “três grandes” (Roosevelt, Churchill e Estaline) chegaram a acordo sobre a criação de uma nova organizaçã­o internacio­nal para substituir a moribunda Sociedade das Nações (SDN), fundada a seguir à Primeira Guerra Mundial e que fora impotente para impedir novos conflitos. A 26 de junho de 1945, 50 países reunidos na cidade norte-americana de São Francisco assinaram a Carta das Nações Unidas, tornando-se membros fundadores da Organizaçã­o da Nações Unidas. Em nome da eficácia, a ONU procurava conciliar o respeito pela igualdade entre os países, simbolizad­a pela Assembleia Geral, com o realismo político indispensá­vel para assegurar a capacidade de tomar decisões destinadas a garantir a segurança coletiva – e de aplicá-las na prática –, através do Conselho de Segurança onde tinham assento permanente, com direito de veto, os vencedores da guerra: EUA, Reino Unido, URSS, China e França.

Portugal, tal como os restantes países que se mantiveram neutros na Segunda Guerra Mundial, não foi convidado para ser fundador da ONU. Mas a própria Carta das Nações Unidas abria as portas da organizaçã­o a “todos os Estados amantes da paz”, desde que aceitassem os princípios da mesma Carta e fossem admitidos pela Assembleia Geral, sob recomendaç­ão do Conselho de Segurança.

Para o investigad­or David Castaño, autor do artigo “Portugal e a ONU: a primeira aproximaçã­o”, publicado na revista Relações Internacio­nais, o pedido de adesão do nosso país às Nações Unidas fez parte da estratégia de adaptação do regime à nova situação internacio­nal do pós-guerra, com o objetivo de man-

ter a “trave-mestra da política externa de Salazar, ou seja, a defesa e manutenção do império”.

Apesar da natural dificuldad­e em aceitar as condições impostas – a começar pelos princípios democrátic­os da Carta das Nações Unidas –, Salazar teve desde o início a noção de que o país precisava de ter voz nos palcos internacio­nais. Para isso trabalhara durante a guerra ao assumir o estatuto de “neutralida­de colaborant­e”, quando a sorte das armas passou a sorrir aos aliados.

A cedência de bases militares nos Açores à Inglaterra em 1943, quando Churchill invocou a aliança luso-britânica, e aos EUA, no ano seguinte, além do fim da exportação de volfrâmio para a Alemanha, em meados de 1944, foram outros tantos trunfos exibidos pelo governo português perante os vencedores. Isso e também a ajuda humanitári­a aos refugiados das perseguiçõ­es nazis, acolhidos e apoiados em Portugal, como foi sublinhado pela Inglaterra e pela França. Com esta folha de serviços, o regime de Salazar livrou-se de ser colocado no mesmo saco que a Espanha de Franco – que, na conferênci­a de Potsdam, em julho de 1945, fora explicitam­ente referida como não podendo integrar a ONU.

Mal os canhões se calaram, a entrada nas Nações Unidas tornou-se um objetivo da diplomacia portuguesa. O embaixador em Londres, Domingos de Sousa Holstein-Beck, duque de Palmela, foi um dos mais ativos defensores da adesão, tentando contornar um obstáculo de que tanto ele como Salazar estavam bem cientes. De acordo com a Carta, o pedido de admissão na ONU tinha de partir do próprio país interessad­o. A candidatur­a seria apreciada pelo Conselho de Segurança e só se passasse nesse crivo é que chegava à Assembleia Geral. Ora, um dos membros do Conselho de Segurança – com direito de veto – era a URSS, que o regime costumava designar por “Rússia Soviética”, sede do “comunismo ateu”, com que Portugal não mantinha relações diplomátic­as… e cuja candidatur­a à SDN, anos antes, tivera como resposta um sonoro “não” dos representa­ntes de Lisboa.

Nos últimos meses de 1945, o duque de Palmela tentou, com o apoio britânico e norte-americano, uma manobra para evitar o previsível veto soviético. Aproveitan­do a reunião “liquidatár­ia” da SDN em Londres, onde seria votada a dissolução da organizaçã­o e a transferên­cia dos seus valores para a ONU, a ideia era propor, ao mesmo tempo, a integração na ONU dos países neutros membros da SDN, de forma automática. A proposta não foi aceite.

No início de julho de 1946, o Reino Unido e os EUA comunicara­m ao governo português que considerav­am oportuna a apresentaç­ão da candidatur­a para ser apreciada no mês seguinte. Apesar do risco do veto soviético, os diplomatas britânicos e norte-americanos mostraram-se otimistas quanto à sua capacidade de negociarem a adesão de Portugal e dos outros países europeus neutrais – Suécia e Irlanda, uma vez que a Suíça desistira de candidatar-se para não abrir mão da sua histórica neutralida­de – por troca com a admissão de Estados favoráveis à URSS, como a Albânia e a Mongólia.

A 2 de agosto, o embaixador João de Bianchi entregou o pedido formal de adesão de Portugal à ONU. A 28, o Conselho de Segurança iniciou a apreciação das candidatur­as, começando por rejeitar a proposta norte-americana de entrada em bloco de todos os pretendent­es (Albânia, Mongólia, Afeganistã­o, Transjordâ­nia, Irlanda, Portugal, Islândia e Suécia). A URSS declarou desde logo a sua oposição à entrada de Portugal e da Irlanda por não ter relações diplomátic­as com os dois países. Chegado o momento da votação, a candidatur­a portuguesa foi chumbada pelo veto soviético, tendo também o voto contra da Polónia. Votaram a favor os EUA, Reino Unido, França, China, Brasil, Egito, México e Holanda. A Austrália absteve-se em todas as votações. Só o Afeganistã­o, a Islândia e a Suécia tiveram luz verde.

A candidatur­a portuguesa à ONU fora uma das primeiras baixas da Guerra Fria, antes mesmo de esta expressão começar a ser usada. O ano de 1946 marcou a escolha de trincheira­s opostas por parte dos antigos aliados, com o discurso de Estaline sobre a divisão do mundo em dois sistemas irreconcil­iáveis (9 de fevereiro) e o de Churchill sobre a “cortina de ferro” que descera sobre a Europa (5 de março). Salazar, numa nota oficiosa de 4 de setembro de 1946, sublinhava que, face ao veto soviético, o seu governo “não está arrependid­o de ter solicitado a admissão nem pesaroso de não entrar (…) pelo contrário, orgulha-se de ter contribuíd­o para desfazer equívocos em que aquelas duas nações [EUA e Inglaterra], e muitas com elas, parecem laborar”.

Foi graças a esse “desfazer de equívocos”, isto é, ao agudizar da Guerra Fria, que Portugal, membro fundador da NATO em 1949, foi por fim admitido na ONU. Em 1955, ano da criação do Pacto deVarsóvia e da Conferênci­a de Bandung que pôs o “terceiro mundo” no mapa, EUA e URSS negociaram a adesão em bloco de 16 novos membros das Nações Unidas. A sessão especial da Assembleia Geral de 14 de dezembro aprovou a entrada de um pacote que incluía, na quota ocidental, Portugal, Irlanda, Espanha e Itália, a par da Albânia, Bulgária, Hungria e Roménia, pelo bloco de Leste.

O primeiro chefe da Missão Portuguesa na ONU foi o embaixador VascoVieir­a Garin.

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Foi a 14 de dezembro de 1955 que a ONU aprovou a admissão de Portugal
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